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Em defesa do debate público sobre o uso de tecnologias de vigilância

Projeto que pode ser aprovado viabilizará a coleta de imagem, sem mecanismos que garantam privacidade

Imagens de câmeras de segurança. Foto: Reprodução/Vigilantismo no Ceará
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Por Helena Martins*

No Ceará, o governador Camilo Santana (PT) apresentou à Assembleia Legislativa projeto que propõe a guarda e utilização, alegadamente para fins de segurança pública, de todas as imagens das ruas registradas por câmeras públicas e privadas. A proposta foi apresentada justamente no momento em que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 2018, passa a vigorar integralmente no Brasil. Um marco na afirmação do direito à proteção dos dados das e dos cidadãos, mas que ainda não parece pautar o poder público.

Sabemos que os dados têm sido utilizados como mercadorias e como mecanismo para vigilância por parte de Estados e corporações. Apesar das tantas críticas feitas a esse processo, que tem levado cidades e mesmo empresas a frear o desenvolvimento de tecnologias, a exemplo da de reconhecimento facial, a fim de ponderar sobre seus impactos na sociedade, o projeto foi apresentado sem detalhamentos e sem possibilidade de real debate público, tendo em vista as restrições das atividades do Legislativo no contexto da pandemia.

Tal como está formulado, o projeto é inconstitucional e fere a Lei Geral de Dados Pessoais. De acordo com o artigo 6° da Lei, as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e dez princípios explicitados no texto, entre os quais destacamos: a) finalidade – tratamento dos dados para propósitos legítimos, específicos e explícitos, informados ao titular; b) necessidade – limitação do tratamento ao mínimo necessário; c) livre acesso – garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; e d) segurança – utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais contra acessos não autorizados e contra situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão. A proposta do governo do Ceará não aborda de forma apropriada nenhum desses princípios.

Além disso, de acordo com a norma, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Mesmo no caso de tratamentos para fins de segurança pública, essas orientações devem ser seguidas.

Conforme reclama nota da Coalizão Direitos na Rede, assinada por várias organizações e instituições, como a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-CE e o Fórum popular de segurança pública do Ceará (FPSP CE), é preciso que se debate efetivamente a proposta. Tomá-la como óbvia pode significar o monitoramento exclusivo e permanente do estado pelo governo, sem que outras instituições participem desse processo com o objetivo de equilibrar direitos e evitar um controle autoritário sobre a população.

Além disso, há outros problemas associados, a começar pela afirmação das promessas de solução de problemas complexos por meio de tecnologias, que são apresentadas como neutras, embora não sejam. O problema da segurança pública não é – ou, pelo menos, não simplesmente – de tecnologia. Se fosse isso, diversos países que lideram a produção tecnológica já teriam superado seus problemas. Ou países que não praticam vigilância sofreriam a violência bem mais que os que se valem desses mecanismos. Mais uma vez, a ideia de que vale tudo para garantir segurança serve muito mais para naturalizar práticas que violam direitos e rotular críticas como absurdas ou antiquadas. Assim, a vigilância vai sendo ampliada praticamente sem debate público. E, vale lembrar, vigilância é instrumento da punição.

Essa vigilância tem consequências ainda mais perversas para grupos sociais e territórios historicamente criminalizados onde só o que chega é o Estado policial, não o promotor de direitos. Pessoas negras e territórios periféricos certamente serão os mais vigiados, como já têm sido por meio de torres de vigilância, pelo braço armado do estado e por outros mecanismos e não apenas no Ceará, mas em todo o mundo, como diversas pesquisas têm mostrado.

Desde o ano passado, o Ceará tem desenvolvido o que foi chamado de Nova Estratégia de Segurança Pública (Nesp). De acordo com o governo estadual, ela “se baseia em integração, coordenação, cooperação e responsabilização em diferentes níveis”. Entre seus eixos, está o de Tecnologia de Informação, o que motivou o investimento em sistemas de videomonitoramento. Parte disso, são mais de 3.300 câmeras de videomonitoramento atuando na prevenção de crimes no Ceará, sendo mais de 2.500 instaladas em Fortaleza. Também tem sido utilizado reconhecimento facial a partir de smartphone de policiais. Quais são os resultados dessas iniciativas? Não sabemos. Além da falta de relatórios de avaliação, trata-se de uma prática opaca, desprovida de controle social ou mesmo de acesso à informação, conforme já discutido neste blog.

Antes de avançarmos mais na vigilância, é preciso que se abra um debate na sociedade, sejam apresentadas avaliações sobre as práticas já vigentes e criados mecanismos para que possamos garantir transparência ao processo e controle social. O discurso do vale-tudo é ilusório e autoritário. A sociedade pode e deve buscar caminhos sempre pautados na garantia de direitos, que é o que nos protege de atos autoritários de qualquer um que esteja à frente do poder do Estado.

Foto: Agência Brasil

Confira a íntegra da nota da Coalizão Direitos na Rede:

Nota sobre projeto de videomonitoramento no Ceará e em defesa de maior debate público

O Governo do Estado do Ceará apresentou, por meio de mensagem à Assembleia Legislativa, um Projeto de Lei que “dispõe sobre o uso compartilhado, em tempo real, com o sistema de videomonitoramento da segurança pública estadual de imagens de câmeras privadas captadas do ambiente externo a imóveis, públicos e privados, situados no estado do Ceará, e dá outras providências”.

O governo justifica a proposta alegando que, “através do compartilhamento de imagens, os órgãos estaduais de segurança pública terão a serviço do cidadão mais uma importante ferramenta para a prevenção e elucidação de crimes”, sendo parte do Programa “Zoom: cidade + segurança”, que tem investido na “instalação de milhares de câmeras de videomonitoramento por diversos municípios cearenses”, de acordo com o texto da mensagem.

Pela proposta, imagens de movimentação em calçadas, ruas e demais logradouros públicos serão permanentemente capturadas e compartilhadas com órgãos de segurança de outras esferas do governo, desde que autorizado pelo órgão estadual competente.

As organizações que assinam esta nota manifestam preocupação e pedem ampliação do debate sobre o tema. A proposta é apresentada justamente no momento em que passam a viger as garantias da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regula o tratamento de dados pessoais, inclusive por pessoa jurídica de direito público, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

A LGPD é um marco na afirmação do direito à proteção de dados em nosso país. De acordo com o artigo 6° da Lei, as atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e dez princípios explicitados no texto, entre os quais destacamos: a) finalidade – tratamento dos dados para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular; b) necessidade – limitação do tratamento ao mínimo necessário; c) livre acesso – garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; e d) segurança – utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais contra acessos não autorizados e contra situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão. A proposta do governo do Ceará não aborda de forma apropriada nenhum desses princípios.

Além disso, de acordo com o texto, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I – o respeito à privacidade; II – a autodeterminação informativa; III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

A proteção de dados deve ser ainda maior quando se trata de dados sensíveis. Ora, a imagem de um indivíduo é um dado biométrico, considerado dado sensível pela LGPD. Seu tratamento exige um maior cuidado por parte de quem se propõe a fazer seu processamento, por conter informações muito pessoais e íntimas de uma pessoa. Diferente de senhas, números de telefone e outros dados que podem mudar, a imagem de alguém, seu rosto e suas características físicas são únicas: o tratamento mal feito e o armazenamento não assegurado podem trazer enormes prejuízos irreparáveis.

É fato que a LGPD prevê que tratamento de dados para segurança pública deverá ser abordado em lei específica, que deverá “prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei”. Atualmente uma comissão de juristas formada pela Câmara dos Deputados se debruça sobre o tema, que é da maior complexidade. Não obstante, a Lei deixa claro que esses setores não podem se eximir das garantias por ela previstas, inclusive da observação da proporcionalidade, da necessidade e do devido processo, o que não parece orientar o Projeto de Lei em discussão na Assembleia do Ceará. Além disso, em decisões recentes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a proteção de dados como direito fundamental ao lado das proteções associadas à privacidade, o que informa a atuação do legislador e demanda a consideração dos princípios e fundamentos relativos à disciplina de proteção de dados pelo poder público em suas diferentes esferas.

O projeto estabelece a prática permanente de captura de informações sobre toda e qualquer movimentação na cidade, ferindo a intimidade, a presunção de inocência, bem como as liberdades de reunião e de associação das pessoas. Cria, ademais, um verdadeiro regime de vigilância permanente e desproporcional, sem sequer informar aos cidadãos qual o órgão responsável por essa ação, a forma, a duração e a finalidade da guarda dos dados; os caminhos para que a população possa saber quais dados estão sendo guardados; políticas ou medidas de transparência  que permitam exercer e observar direitos, tais como a já referida proteção de dados e outros, como a privacidade.

Não se trata, aqui, de negar a possibilidade de acesso a determinadas imagens. No ordenamento jurídico e na prática, já existem previsões de compartilhamento de informações em investigações de casos concretos. O que se questiona é a naturalização e mesmo imposição – inclusive sem que seja ouvido o contratante do serviço que está, desta maneira, sendo obrigado a financiar um serviço estatal – desse tipo de prática de vigilância ampla, por órgãos não diretamente ligados à prevenção de crimes naquela região. O argumento de que ela pode contribuir com investigações é, portanto, frágil e desproporcional: em casos necessários e informados, a partir de pedidos à Justiça, tem sido recorrente o acesso a imagens, inclusive privadas. Esse caminho nos parece mais adequado aos princípios da finalidade e da necessidade, listados na LGPD, e da proporcionalidade entre direitos.

O texto é também bastante genérico. Por exemplo, o artigo 5o informa que as imagens não poderão ser repassadas a pessoas estranhas à Administração. Mas toda a Administração terá acesso a elas?  O texto deixa a entender que sim, o que não parece ser cuidadoso com informações tão importantes, que poderão acabar sendo vazadas caso o compartilhamento e a guarda não ocorram de forma adequada. Ademais, embora informe que as imagens não serão divulgadas em mídias sociais, abre brecha para isso ao permitir “se o exigir o interesse da segurança pública, mediante devida motivação”. São termos abertos e que não apontam a existência de devido processo ou de tomada coletiva de decisão sobre tal interesse.

A proposta deve ser lida à luz do crescente vigilantismo e também da situação da segurança pública no Brasil. Sabemos de problemas como falta de transparência e de controle social, bem como de práticas que se voltam à criminalização de determinados grupos sociais e territórios, a exemplo da juventude negra e de moradores de bairros periféricos, que em geral já são alvos de abordagens que violam direitos, inclusive de ir e vir na cidade. Também são esses grupos e territórios os monitorados por torres e câmeras em Fortaleza, em uma política que fortalece estigmas e não tem reduzido os números alarmantes da violência na capital cearense. As tecnologias não são neutras e podem reforçar preconceitos, como os de raça e classe.

Nesse sentido, é importante destacar o relatório “Discriminação racial e tecnologias digitais emergentes: uma análise dos direitos humanos”, publicado recentemente por E. Tendayi Achiume, Relatora Especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada. Em nota assinada por mais de 80 entidades de defesa de direitos humanos e diversos especialistas de diferentes partes do globo, destaca-se “o apelo da Relatora Especial Achiume para que avaliações obrigatórias de impacto nos direitos humanos sejam pré-requisito para a adoção de novas tecnologias. Também acreditamos que, caso essas avaliações revelem que uma tecnologia tem alta probabilidade de impactos raciais díspares e prejudiciais, os Estados devem impedir seu uso por meio de proibição ou suspensão. (…) Da mesma forma, reiteramos nosso apoio à imposição pelos Estados de uma suspensão imediata do comércio e do uso de ferramentas de vigilância desenvolvidas na esfera privada até que os Estados adotem salvaguardas apropriadas”.

Em várias cidades de todo o mundo, têm sido questionadas políticas com o mesmo teor e até mesmo de menor extensão, como a adoção do reconhecimento facial, o uso de câmeras em lojas e a captura de informações no transporte público. Há, inclusive, pedidos de moratória na adoção de tecnologias voltadas à vigilância, tendo em vista a necessidade de toda a sociedade debater mais seus impactos e os contornos de tais ações. Exemplo disso, em junho de 2020, a IBM anunciou que deixará de pesquisar, desenvolver e oferecer tecnologia de reconhecimento facial, em posicionamento contrário ao monitoramento em massa, à criação de perfis raciais e a violações de direitos humanos. As potenciais consequências danosas e discriminatórias do monitoramento por reconhecimento facial levou a cidade de São Francisco, nos EUA, e mais três outras do Estado da Califórnia, a banirem o uso da tecnologia para fins de vigilância. Tais medidas municipais também tiverem o apoio da relatora Achiume em seu relatório. Desse modo, é preocupante notar que a postura do Governo do Ceará é diametralmente oposta às boas práticas adotadas por algumas empresas e governantes de outras regiões do globo.

Diante do exposto, solicitamos que o Governo do Ceará e a Assembleia Legislativa convoquem espaços de debate sobre o tema, para que a comunidade técnica, a academia, a sociedade civil e a população em geral possam discuti-lo em toda sua profundidade e apresentar propostas pautadas na harmonização de direitos. Ao mesmo tempo, sugerimos ao Governo do Ceará, antes de pautar o projeto de lei em comento, que estabeleça uma política estadual de proteção de dados pessoais, harmonizada com a LGPD, determinando normas e condutas para o governo do estado em relação ao tratamento de dados dos cidadãos e cidadãs cearenses, com as devidas salvaguardas e respeitando os princípios descritos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e na Constituição Federal. Só é possível haver segurança pública em um ambiente democrático mediante o respeito integral a garantias fundamentais.

Assinam esta nota:

Associação Cearense de Imprensa (ACI)

Coalizão Direitos na Rede

Coletivo de Mães e Familiares do Curió

Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-CE

Fórum popular de segurança pública do Ceará  (FPSP CE)

Instituto Beta: Internet & Democracia

Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

LAPIN – Laboratório de Pesquisa em Políticas Públicas e Internet

Rede de Observatórios de Segurança

Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP – Ceará)

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Ceará (Sindjorce)

Telas – Laboratório de Pesquisa em Políticas, Tecnologia e Economia da Comunicação (UFC)

Transparência Brasil

Unidade Classista

*É jornalista, professora da UFC e integrante do Intervozes

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