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Desenvolvimento digital poder ser ameaçado por novas regras da OMC

Liberalização do comércio eletrônico com regras definidas por super potências afetará privacidade e capacidade de geração de renda no sul-global

Regras de não taxação de comércio digital pode escoar receitas produzidas nos países em desenvolvimento para os países de economia avançada
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Por Marina Pita*

Imagine um mundo em que todos os recursos gerados pela economia são escoados para um punhado de países. Nele, todo o conhecimento e produção circulam especialmente por meio do comércio eletrônico e resta às localidades imprimirem em 3D, por meio de máquinas que desempregam massivamente, tudo que se possa imaginar: de equipamentos eletrônicos a carros.

As impressoras se autoproduzem a partir de projetos desenvolvidos no mesmo punhado de países para onde vão todos os recursos produzidos pelo comércio de bens imateriais.

Este cenário, aparentemente de ficção científica, pode não ser muito distante da divisão mundial da produção e do trabalho global que teremos no futuro, caso os países que hoje dominam a capacidade de desenvolvimento tecnológico e de comércio por meio digital aprovem determinadas regras de funcionamento para o e-commerce global.

O risco está em cima da mesa.

Puxada pela estratégia da agenda norte-americana, com o apoio das grandes companhias de tecnologia estadunidenses e de um grupo de países desenvolvidos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) quer tomar decisões sobre o comércio eletrônico global que deverão ser cumpridas por todos os países.

Trata-se da imposição da eliminação das chamadas barreiras regulatórias no área do e-commerce, que está na pauta da 11ª reunião ministerial da OMC, que acontece em dezembro, na Argentina.

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De acordo com Deborah James, da coalização internacional Nosso Mundo Não Está à Venda (Our World Is Not for Sale) “as propostas são projetadas para uma economia mundial, digitalizada e sem fronteiras na qual grandes corporações de finanças, tecnologia, logística e outras podem movimentar trabalho, capital, insumos e dados de forma contínua ao longo do tempo e do espaço, sem restrições, abrindo novos mercados, ao mesmo tempo em que limitam obrigações sobre corporações que possam garantir que trabalhadores, comunidades ou países se beneficiem de suas atividades”.

Algumas das propostas-chave dos Estados Unidos, incorporadas nas de muitos outros países, são: proibição de direitos alfandegários digitais; liberação de diversos setores de serviços; livre fluxo de dados entre fronteiras; impedição a barreiras de localização; proibição de mecanismos de transferência tecnológica; padronização impulsionada pelo mercado e promoção da participação de acionistas no desenvolvimento de regulações e padrões. 

Tais propostas, se aprovadas, podem inviabilizar qualquer iniciativa de avanço e empoderamento tecnológico dos países em desenvolvimento, bem como afetar gravemente o direito à privacidade.

Podem significar, para um mundo cada vez mais digital, um aprofundamento da divisão internacional do trabalho, em vez de se buscar maior equilíbrio entre o comércio internacional, para que as populações de todo o mundo possam garantir insumos e recursos para a sobrevivência e vida digna.

 Segundo James, “as transformações positivas que a era digital oferece para uma maior prosperidade, emprego, inovação e conectividade estão ameaçadas pelos esforços monopolistas e antidemocráticos das corporações mais poderosas, que querem reescrever as regras da economia mundial futura em seu favor”. Ou seja, a velha agenda dos acordos de livre comércio atualizada e apresentada com nova roupagem. 

Longe da participação social

Para quem acompanha as discussões em torno da Internet, a primeira estranheza em ver o debate sobre e-commerce ser pautado na OMC é o fato de que um tema tão importante seja tratado em um fórum do qual participam apenas governos – e as corporações internacionais cujos interesses eles representam.

Enquanto, no campo da Internet, a sociedade civil se esforça para a criação de encontros, fóruns e agendas com participação multissetorial (incluindo, além de governos, empresários, técnicos, acadêmicos e a própria sociedade civil), na OMC são corporações e alguns países distribuindo as cartas onde têm mais influência e podem ganhar o jogo.

Vale lembrar que, em uma economia cada vez mais movida por dados, simplesmente liberar o tráfego internacional do que está sendo considerado “o novo petróleo” da economia não só afeta a privacidade de cidadãos e cidadãs de todo o mundo mas afeta a possibilidade de avanços econômicos locais na área de mineração de dados, reforçando a tendência de dependência e oligopolização neste setor.

Ao mesmo tempo, o estabelecimento da proibição de regras de proteção à tecnologia local, por exemplo, demoliria as poucas iniciativas de países em desenvolvimento, como a Índia, de regular as tecnologias digitais e assegurar que parte desta economia seja desenvolvida internamente, para garantir emprego, renda e uma balança comercial razoável. 

Aliás, num dos poucos momentos em que o assassinado governo Dilma demonstrou um esboço de projeto de desenvolvimento nacional em redes – ao incluir, no Plano Nacional de Banda Larga, a obrigação de componentes desenvolvidos e fabricados no país para isenção fiscal na construção de redes de telecomunicações –, foi questionado por EUA, União Europeia e Japão na OMC. Ali também será julgada a Lei de Informática, que deu impulso para a venda de computadores no Brasil. 

Por último, mas não menos importante, é preciso que direitos como à diversidade cultural, à liberdade de expressão e ao acesso à informação entrem nas discussões sobre fluxo internacional de bens digitais. Isso porque os bens culturais, de comunicação e entretenimento não devem ser regulados apenas com base nas regras de mercado, sem considerações mais amplas sobre o impacto à cultura dos povos. 

Por uma agenda que diminuía a desigualdade digital 

Claro que todo este debate não está colocado assim, às claras.

“De um lado, procura-se dar às negociações sobre comércio eletrônico um tom de inevitabilidade, enquanto, de outro, o tema é aliado à agenda do desenvolvimento das pequenas e médias empresas, com o intuito de buscar maior legitimidade à sua regulação, mas também justificar a discussão na sequência dos impasses da chamada rodada para o desenvolvimento”, defende Lucas Torquatto, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, em artigo publicado pela Rebrip (Rede Brasileira Pela Integração dos Povos). 

Em 1998, os membros da OMC, incluindo o Brasil, acordaram um mandato para “discutir” o e-commerce na organização. As negociações ocorreram em vários comitês diferentes, mas não há negociação para regras vinculantes, até o momento.

Agora, impedir o lançamento de regras vinculantes sobre e-commerce na OMC é fundamental, bem como reforçar a agenda internacional pró-diminuição da desigualdade digital, e pró-privacidade. 

Agora, cabe à sociedade civil, especialmente dos países do sul global, construir a resistência a estes processos, liderados por um punhado de países na OMC.

É preciso levar o debate para uma arena em que possa ser ouvida e onde seja possível influenciar o desenvolvimento de uma agenda econômica que nos tire do trilho da distopia e nos permita voltar a sonhar com um mundo mais justo e igualitário, a partir das inovações tecnológicas, incluindo o uso da Internet e da Web. 

*Marina Pita é jornalista e integra a Coordenação do Intervozes.

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