Intervozes
Da adultização à proteção: ECA Digital é uma conquista, mas é preciso ir além
Regulamentar o ambiente digital, responsabilizar as plataformas e construir políticas públicas são fundamentais para proteger crianças e adolescentes


O Projeto de Lei 2628/2022, agora sancionado como Lei 15.211/2025, representa uma vitória histórica na proteção das crianças e adolescentes no ambiente digital. Batizado de ECA Digital, em referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o projeto ganhou força a partir das denúncias veiculadas no vídeo “Adultização”, do influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, que expôs a sexualização e a exploração de crianças e adolescentes na internet.
O caso evidenciou como os algoritmos amplificam conteúdos nocivos e como as plataformas são coniventes ao autorizar que esses conteúdos sejam anunciados. Essa conquista é fruto de anos de militância, pesquisa e articulação de organizações da sociedade civil e de especialistas que atuam nos temas da infância, do direito à comunicação e da internet, denunciando reiteradamente o descaso das plataformas digitais, que sempre priorizaram o lucro acima da proteção infantil. A mobilização gerada na sociedade brasileira, a partir da publicação do vídeo de Felca, demonstrou a preocupação da população em torno da urgência de proteger crianças e adolescentes no ambiente digital.
Não se trata de um tema periférico, envolve diretamente a saúde mental, a integridade e o futuro de milhões de crianças e jovens brasileiros. O ECA Digital estabelece obrigações nítidas para aplicativos, jogos eletrônicos, redes sociais e serviços digitais, incluindo prevenção por desenho, verificação de idade confiável, ferramentas de supervisão familiar, resposta ágil a conteúdos ilícitos e regras específicas para publicidade e tratamento de dados de crianças e adolescentes. Empresas que não cumprirem as normas podem ser penalizadas com advertência, suspensão temporária e até proibição de atividades, além de multas, com valores que podem chegar a 10% do faturamento do grupo econômico ou até R$ 50 milhões. Para empresa estrangeira, a filial ou o escritório no Brasil responde solidariamente.
O conteúdo abrangido pela lei é amplo: prevenção contra exploração e abuso sexual, pornografia, violência física, assédio virtual, incitação à violência, uso de drogas, automutilação, suicídio, jogos de azar, produtos proibidos para crianças e adolescentes e práticas publicitárias predatórias ou enganosas. A lei também prevê a criação de uma autoridade administrativa autônoma para proteger os direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, funcionando como agência reguladora, com capacidade de consultas públicas e fiscalização independente.
Ao sancionar a lei, o presidente Lula encaminhou uma Medida Provisória ao Congresso Nacional para transformar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em Agência Nacional de Proteção de Dados, com autonomia funcional, técnica e decisória, administrativa e financeira. Esta decisão consolida o órgão como regulador independente da proteção de dados no país, que terá, entre suas responsabilidades, a aplicação efetiva do ECA Digital.
A urgência do tema ficou ainda mais evidente durante a sanção presidencial, quando Lula vetou o prazo de um ano para o início da validade da lei, antecipando sua vigência para seis meses. O novo prazo garante o tempo necessário para que as empresas se adequem à nova legislação, e, ao mesmo tempo, reconhece que a proteção de crianças e adolescentes não pode esperar. Afinal, conforme demonstram os dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, a internet faz parte da vida diária desse público, com 70% das crianças de 9 a 10 anos e 71% das de 11 a 12 anos utilizando o YouTube diariamente, e 78% dos adolescentes de 13 a 14 anos e 81% dos de 15 a 17 anos acessando o Instagram várias vezes ao dia. A pesquisa destaca ainda que 45% das pessoas entre 9 e 17 anos já possuem perfil no TikTok e 63% delas conta no Instagram. Essa presença massiva de crianças e adolescentes nas plataformas digitais exige regras nítidas e eficazes de proteção.
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a proteção da infância é um dever coletivo da família, do poder público e da sociedade. Os direitos digitais estão incluídos nesse escopo. Guias pedagógicos anteriores, como “Crianças, adolescentes e telas – Guia sobre usos de dispositivos digitais”, produzido pelo Governo Federal com a participação de organizações da sociedade civil, a exemplo do Intervozes, fornecem orientações importantes para famílias, educadores e profissionais de saúde.
Políticas públicas de educação midiática e digital também são fundamentais, pois garantem que crianças, adolescentes, famílias e educadores compreendam o funcionamento das tecnologias e possam tomar decisões informadas em um ambiente seguro, inclusivo e não discriminatório. Ainda que essenciais, essas ferramentas não substituem a necessidade de uma regulamentação efetiva das plataformas digitais, que hoje operam com impunidade, explorando dados e expondo crianças a conteúdos nocivos em nome do lucro.
A Lei do ECA Digital é uma grande conquista, mas a regulamentação deve ir além, enfrentando a lógica comercial das big techs, baseada em coleta massiva de dados, segmentação algorítmica e práticas manipulativas para retenção da atenção. Não há neutralidade no funcionamento das plataformas, há uma dependência da exploração massiva de dados para garantir lucro. É preciso enfrentar o problema com urgência e criar um ecossistema digital mais transparente e responsável, em que grupos vulneráveis sejam protegidos e as plataformas prestem contas sobre como moderam conteúdos e direcionam informações.
A sanção da lei representa um passo decisivo, mas a batalha pela infância segura no ambiente digital continua. Garantir direitos digitais deve ser prioridade absoluta e não apenas para proteger crianças e adolescentes, mas para proteger toda a sociedade.
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