Intervozes

Como debater a modernização das escolas se elas seguem desconectadas?

O acesso à internet a estudantes e professores segue longe do adequado, graças à problemática relação entre o empresariado e o Estado no Brasil

As escolas devem ser espaços neutros em matéria de religião e politicamente plurais
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Por Marina Pita*

A medida provisória que tenta impor de cima pra baixo uma reforma do ensino médio brasileiro tem sido alvo de muitas críticas por parte de estudantes e de profissionais que se dedicam, há anos, ao tema da educação, gerando também um debate público importante sobre modernização do ensino.

Esta modernização aparece muitas vezes, tendo como base, a perspectiva de conexão das escolas à internet, questão que atualmente se faz essencial para a difusão e apropriação do conhecimento. Na prática, no entanto, a realidade da política pública de conexão das unidades educacionais está longe de possibilitar esta modernização e ainda distante de garantir a diversidade de recursos de ensino/aprendizagem a estudantes e professores.

As escolas brasileiras foram conectadas por meio de um acordo entre o governo Lula e as concessionárias do serviço de telefone fixo, em 2008, por meio do Decreto nº 6424, uma movimentação que criou o chamado Plano Banda Larga nas Escolas (PBLE). Como o Estado não contava e ainda não conta, vale lembrar, com instrumentos adequados para impor obrigações de universalização – garantia de acesso a toda população – da internet, optou pelo famoso “jeitinho”.

O jeitinho que criou o PBLE consiste na troca das obrigações da concessão do serviço telefônico fixo por obrigações de ampliação da rede de dados e conexão nas escolas. As concessionárias acordaram – por Termo Aditivo – a trocar a obrigação de instalar postos de serviço telefônico nos municípios pela instalação de infraestrutura de rede para suporte a conexão à internet em todos os municípios brasileiros e conectar todas as escolas públicas urbanas, além das entidades ligadas à formação de professores vinculadas a todos os entes da federação, com manutenção dos serviços sem ônus até o ano de 2025.

À Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) coube a responsabilidade de fiscalizar o cumprimento das obrigações das prestadoras de serviços de telecomunicações, sendo que a gestão do programa é feita conjuntamente pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação e Anatel, em parceria com as secretarias de Educação estaduais e municipais. Por sua vez, as concessionárias de telefonia fixa que aderiram são Telefônica, CTBC, Sercomtel e Oi/Brt.

Pois bem. O caso é extremamente interessante porque ilustra a política brasileira de forma didática: dá-se um nome bonito e divulga-se a iniciativa, faz-se alguma parte do acordado, depois as empresas fingem que fazem e o poder público – no caso, a agência fiscalizadora – finge que acredita. E assim como em outras políticas, seguimos sendo enganados com um programa de conexão em centros educacionais que, na verdade, está longe de atender à demanda de acesso à rede.

Porque estamos dizendo isso? Apesar de mais de 68,7 mil escolas terem sido conectadas, cerca de 5,5 mil escolas urbanas seguem sem conexão. Os dados são do Ministério das Comunicações – atual Ciência, Tecnologias, Inovações e Comunicações – e da própria Anatel, obtidos em 2015.

O programa foi implementado em 2010, há seis anos, e as cerca de 5,5 mil escolas desconectadas são justamente aquelas que, por sua localização geográfica e por determinantes socioeconômicos, têm as maiores barreiras de acesso a produtos culturais e educativos. Ou seja, o programa deixou para trás justamente os mais necessitados, o que tem se configurado como regra na política pública de acesso à internet no País.

Para além deste buraco, que para alguns pode ser classificado como detalhe, as concessionárias de telefonia fixa deveriam elevar a velocidade das conexões. De acordo com Termo Aditivo, a partir de 31 de dezembro de 2010 todas as escolas integrantes do PBLE deveriam estar conectadas com velocidade igual ou superior a dois megabits por segundo (2 Mbps) para download e pelo menos um quarto dessa velocidade para upload.

E mais, a velocidade deveria ser revista semestralmente, de forma a assegurar rapidez equivalente à melhor oferta comercialmente oferecida ao público em geral na área de atendimento em que a escola se localiza. A cada três anos, Anatel e operadoras deveriam realizar atualização nas especificações das conexões “em função da evolução tecnológica e da necessidade das escolas”.

Em 2015, segundo dados da Anatel, apenas 4,8 mil escolas tinham velocidades defasadas em relação às obrigações das prestadoras de serviço. Mas aqui vai a pegadinha: os dados da Anatel são estruturados por autodeclaração das empresas obrigadas a prestar o serviço.

Assim, dá para entender as narrativas dos usuários das redes nas escolas que seguem dizendo “a internet nas escolas não funciona”. Nem sempre, para não dizer nunca, a velocidade declarada é aquela que chega aos centros educacionais.

Em 2015, solicitei a tabela de conexão das escolas do PBLE ao Ministério das Comunicações para a produção de uma matéria sobre o tema. A tabela foi entregue sem a coluna de velocidades. Questionei a uma funcionária do órgão sobre o porquê de terem excluído a coluna, no que fui informada que “a coluna não condizia com a realidade, uma vez que era autodeclaratória”. Ou seja, o próprio Estado sabe que o instrumento criado para garantir a política não tem aderência à realidade. E fica por isso mesmo? Pelo jeito, fica.

O Termo Aditivo do PBLE previu que a revisão das velocidades deveria ser feita a partir de parâmetros das ofertas comerciais, entendendo que as operadoras tenderiam a oferecer melhores velocidades a seus usuários pagantes. Não adiantou. Determinou ainda a revisão das metas gerais (ou do piso de oferta) a cada três anos, nesse caso, pelo poder público, o que não foi realizado.

“Duas revisões já deveriam ter sido feitas, em 2010 e 2013, e a não consumação das mesmas tem forte impacto negativo na implementação da política, pois tende a manter milhares de escolas com conexões precárias e pouco efetivas para o uso pedagógico das tecnologias”, afirma o Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) em publicação de análise da política.

Exemplos de fora

Nos Estados Unidos – onde também em teoria as escolas estavam todas conectadas – o Escritório de Tecnologias Educacionais, órgão ligado à Secretaria da Educação (equivalente a um ministério), decidiu verificar, em 2011, a conexão nas escolas do país, para além das planilhas digitais, e descobriu outra realidade.

Ao considerar escolas conectadas apenas aquelas que tivessem conexão de internet sem fio dentro da sala de aula, apenas 30% das unidades educacionais passaram pelo critério e a conexão em muitas delas estava limitada à área administrativa.

A decisão do governo foi liberar 8 bilhões de dólares para conectar as escolas. O recurso veio do programa educacional E-rate, criado em 2007 e alimentado por uma taxa cobrada das empresas de telecomunicações e que era usado para conectividade em bibliotecas, escolas primárias e secundárias.

A iniciativa de conexão das escolas ConnectedED, lançada em 2013, está sendo implementada com a participação da sociedade civil e pretende levar, até 2018, conexão à internet de 100 Mbps por cada mil estudantes (100 Kbps por estudante).

Desafios brasileiros

Por aqui, como vimos, a relação do Estado brasileiro com o mercado privado é de total cumplicidade e nenhum dos dois lados exerce o papel que realmente deveria cumprir para garantir o sucesso na execução da política. Assim, pelo menos três grandes desafios seguem sendo prioritários quando o assunto é a modernização das escolas por meio de conexão à web.

O primeiro é garantir instrumentos para o Estado forçar a universalização do acesso de qualidade e adequado ao uso da internet nas escolas – inclusive as rurais. Com o desmonte da política de telecomunicações no Brasil, por meio do Projeto de Lei 3453/2015, e o fim da prestação em regime público, que se pretende com ele, nem as obrigações previstas na Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei nº 9.472/1997.) existirão. Não fazendo mais sentido, portanto, as trocas de obrigações previstas no Termo Aditivo de 2010.

O segundo desafio é a prioridade política do Estado e dos governos do momento. Esta prioridade deve estar embasada na garantia do acesso da população à rede e não no exclusivo lucro das empresas operadoras.

Assim, quando uma lei for pensada para alterar a LGT, como está acontecendo agora, o usuário e qualidade de sua conexão serão colocados em primeiro lugar – não é o que acontece na proposta em tramitação. Então como garantir que a sociedade se envolva neste debate para exigir que seja ouvida?

O terceiro desafio segue sendo a fiscalização. Está evidente que a Anatel não cumpre de forma adequada seu papel de fiscalizadora. E é preciso que a sociedade – que cada vez mais é a sociedade da informação – debata o que fazer para que a agência mude e passe a cumprir seu papel.

Sim, há problemas de estrutura e financiamento da agência, mas, para além disso, é preciso acabar com a relação promíscua entre executivos das empresas e funcionários e conselheiros do órgão.

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes 

 

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