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Artigo: O pacto narcísico da branquitude e o dilema social

Recentemente lançado pela Netflix, o filme ‘O dilema das redes’ reforça a ideia de que é possível um ‘capitalismo sadio’. Spoiler: não é

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Por Isadora Lira*

A palavra algoritmo parece ter se tornado cada vez mais frequente nas conversas rotineiras, nas discussões políticas e na forma como se compreende as especificidades do cotidiano. Você certamente utiliza mídias sociais e chegou até este texto via alguma delas. Talvez você tenha assistido o recente documentário lançado pela Netflix, Dilema das redes, cuja proposta é expor como as redes sociais podem ter um impacto devastador sobre a democracia, a humanidade e até mesmo sobre o corpo humano.

Você não precisa ter visto a obra para seguir por aqui, ainda que eu aborde alguns dos problemas do filme, a ideia é propor também outras referências para se pensar sobre esse e outros dilemas sociais.

A contínua reinvenção da roda

Primeiro, o documentário tece críticas a algumas das chamadas big techs: as mais lucrativas empresas de tecnologia. Dito isto, posso começar a falar qual é um dos maiores problemas do filme: a ausência total de qualquer menção que essas empresas de tecnologia ascenderam através do racismo, seja permitindo a propagação de discursos de ódio, com o próprio design das tecnologias, seja com exploração de pessoas negras, ou com a ausência de pessoas de cor nas posições de liderança dessas empresas.

Isso é reforçado pela própria produção do documentário, que entrevistou majoritariamente pessoas brancas. As pessoas convidadas para o documentário se dividem em dois grupos: ex- executivOs e ex-engenheirOs de grandes empresas de tecnologia (sim, com exceção de um entrevistado, são todos brancos); e pessoas que pesquisam sobre o assunto. Quanto ao primeiro grupo, de fato, é o perfil da maioria esmagadora de funcionários dessas empresas (você pode verificar essa informação aqui). Mas, quanto ao segundo, existem muitas pesquisadoras que há anos investigam e apontam como as tecnologias de mídias sociais são orientadas pela branquitude, por causa de um próprio design que reforça estereótipos racistas, misóginos e que incidem de forma diferenciada de acordo com grupos sociais.

Por exemplo, Safiya Umoja Noble é pesquisadora, professora da Universidade da Califórnia (UCLA) e autora do livro Algorithms of Oppression (2018). Na obra, Noble apresenta um panorama sobre como a utilização de algoritmos em decisões digitais reforça relações sociais de opressão. Orientada em uma perspectiva do feminismo negro estadunidense, Noble argumenta que o buscador Google estrutura o conhecimento de tal forma que cria sua própria realidade material particular.

Além das entrevistas, o filme também apresenta uma dramatização tosca do que seria uma família média dos EUA. O documentário, à sua maneira, também cria a sua própria realidade: o grande tormento está no adolescente branco viciado em dopamina, incapaz de sobreviver a 4 dias distante do seu celular; ou como os ex-executivos e engenheiros foram incapazes de perceber o que estavam construindo.

Todos os pontos trazidos no documentário comunicam sobre um recorte muito específico: os brancos surpresos com os efeitos devastadores que as tecnologias desenvolvidas por eles mesmos (orientadas pelo viés da branquitude masculina).

A pesquisadora e professora da Universidade de Princeton, Ruha Benjamin, em Race after Technology (2019), parte do princípio de que raça é uma tecnologia (afinal, desenvolvida pelos seres humanos). Em sua obra, Benjamin argumenta que a segregação promovida pelas big techs servem como uma repaginação do antigo Jim Crow (a legislação que permitia a segregação racial nos EUA até meados de 1960). Ou, como Benjamin nomeia, o Novo Código Jim. A criação da raça enquanto tecnologia e tecnologias para manutenção da discriminação e dominação sobre outras pessoas.

Já a socióloga Simone Browne, aponta que apesar desse receio crescente sobre a vigilância através dos aparatos digitais, a vigilância como biopolítica não surge no século XX, mas já estava presente, pelo menos, desde a própria disposição dos navios negreiros. “Mais do que ver a vigilância como algo inaugurado pelas novas tecnologias… vê-la como permanente é insistir em que levemos em consideração o modo como o racismo e a anti-fraqueza reforçam e sustentam as vigilâncias cruzadas de nossa ordem atual”, afirma Browne no livro Dark Matters: On the Surveillance of Blackness (2015).

E olha que, até agora, só falei de pesquisadoras estadunidenses, que é para facilitar para a produção da Netflix.

Então, salta aos olhos quando se produz um documentário desse cacife para servir uma narrativa de brancos para brancos. Sem mencionar que essas tecnologias de mídias sociais, tais como tantas outras produzidas há séculos, são orientadas por princípios de segregação racial.

Há na literatura brasileira um conceito que explica esse curioso fenômeno de pessoas brancas referenciarem a si mesmas: o pacto narcísico da branquitude. Como descreve Maria Aparecida Bento Silva em sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo. “Um pacto silencioso de apoio e fortalecimento aos iguais. Um pacto que visa preservar, conservar a manutenção de privilégios e de interesses”, escreve.

Esse é um dos aspectos que considero mais perversos no documentário: convida-se pessoas que participaram ativamente do processo de construção do sistema que atinge de forma desproporcional diferentes grupos sociais, apresenta-os na perspectiva do tormento de um adolescente branco e são essas mesmas pessoas as convidadas a projetar uma solução “possível”.

A crítica ao capitalismo como slogan (ou como meme?)

Tudo bem, uma das entrevistadas do documentário é a pesquisadora que cunhou a ideia de capitalismo de vigilância, a Shoshanna Zuboff, a quem geralmente referencio em outros textos. No entanto, a crítica ao capitalismo não passa do primeiro parágrafo, algo como: “as empresas lucram com nossos dados, desequilibram a política de outros países e muito mais”.

O documentário aponta essa relação entre países capitalistas (EUA) e países que estão nessa periferia do capitalismo (como o Brasil), mas de forma muito superficial, como se houvesse apenas essa dominação no espaço digital (por exemplo, quando se menciona que em Taiwan o Facebook é sinônimo de internet ou quando se apresenta uma manifestação no Brasil com pessoas gritando “Facebook!”).

A dramatização que delineia o documentário apresenta uma família na qual cada membro tem uma relação específica com mídias sociais/celular. É o ápice do sofrimento psicológico do adolescente branco que sustenta o quanto a própria dinâmica de dominação afeta a própria sociedade estadunidense.

Quero frisar que a exploração das big techs sobre demais países não se restringe à extração de dados pessoais. Não que isso tenha pouca importância, mas aparentemente não comunica alguns dos problemas materiais e palpáveis. A extração é também sobre o desgaste dos corpos de trabalhadores de mineradoras de cobalto, lítio e demais matérias-primas para a construção de dispositivos; é a sistematização e consolidação de desigualdades, com o uso e implementação de tecnologias de reconhecimento facial que atuam para o agravamento da discriminação racial, ao atingir de forma desproporcional pessoas negras ou de cor; é uma extração que visa exterminar a pluralidade humana, seja com a limitação de resultados em um buscador, seja com a pasteurização da própria forma de contar as histórias (e aqui a crítica é especialmente para a Netflix, que produz o documentário, gênero que a empresa tem investido e de onde é mais premiada).

No Dilema das Redes, entrevistados apontam para a desigualdade entre as empresas de tecnologia e os indivíduos. E, em se tratando de forma individual, o sentimento de impotência é inescapável. No entanto, é como se não fosse possível qualquer agência de usuários e grupos na formação de resistências à essa lógica. É mais um efeito daquilo mencionado no primeiro ponto: a exclusão de análises feitas por pesquisadoras de cor, que tanto identificam como tais plataformas se estruturam, como mapeiam algumas iniciativas possíveis. O próprio Sleeping Giants é uma proposta de atingir o cerne dessas empresas, ou tantas outras ações hacktivistas.

Um aspecto que precisa ser sublinhado quando se tece críticas ao capitalismo em tempos de mídias sociais é a dicotomia entre hiperconexão e direito à desconexão. Em países como o Brasil, por exemplo, com contínua supressão aos direitos trabalhistas e a ascensão de trabalhos informais (ou por app), quem tem direito/possibilidade de se desconectar do celular? Ou mesmo aquelas pessoas que não trabalham a serviço de aplicativo (como entregadores e motoristas), mas que necessitam gerenciar mídias sociais para divulgação de seus serviços. Novamente, existe possibilidade de desconexão para aquelas pessoas que trabalham na informalidade e utilizam tais plataformas para trabalhar/ou manutenção de seus trabalhos?

Há ainda o adendo de que, apesar do documentário inteiro ser sobre plataformas sediadas nos EUA (obviamente a Netflix não está inclusa), vez por outra alguém menciona sobre os “bombardeamentos” de fake news promovidos pela Rússia e China. Inclusive, mantém esse discurso de que todas as mazelas se deram por causa de notícias falsas (sendo que esse é um problema bem mais complexo). Faz sentido, visto que a mensagem final é o reforço de um capitalismo sadio (spoiler: isso não é possível).

Não me debrucei neste texto em outros aspectos que me chamaram a atenção no documentário, como a correlação entre número de automutilação entre adolescentes e utilização de smartphones, apresentada como imputação causal, mas que não são demonstradas evidências suficientes. O que, na melhor das hipóteses, serve como ferramenta sensacionalista. E a dependência química causada pelas mídias sociais, aspecto que merece uma observação detalhada em outro momento.

O objetivo aqui é de reforçar que quaisquer críticas (necessárias e urgentes) às big techs só são minimamente eficientes se alinhadas e comprometidas com a luta antirracista. Caso contrário, é pura má-fé ou ignorância que contribui para alimentar desigualdades.

*Isadora Lira é jornalista, doutoranda em Comunicação na UFPB e integrante do Intervozes.

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