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Após investidas de Bolsonaro, EBC ganha manual de combate à censura

Documento traz breves instruções de como os jornalistas devem se proteger no cenário atual e preservar a missão da comunicação pública

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Por Lucas Krauss

Após 10 meses de intervenção de Jair Bolsonaro na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a missão da comunicação pública está cada vez mais distante do dia a dia das emissoras públicas comandadas pela empresa. A censura e o governismo são ações corriqueiras, que impedem os trabalhadores da EBC, em sua grande maioria empregados públicos concursados, de executarem a missão prevista em lei e na Constituição Federal de informar com autonomia os cidadãos.

Após várias denúncias recebidas pelo Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, a entidade acaba de lançar um “minimanual contra a censura na EBC”, um compêndio de normas e legislações que garantem aos trabalhadores combater diariamente as interferências dos trabalhos pelas chefias da empresa pública, reforçando que a sociedade é quem paga os salários da empresa, e não a presidência da República. Pensado para o dia-a-dia dos repórteres, produtores e editores – distribuído principalmente por WhatsApp – o documento se define como breves “instruções de como os jornalistas devem se proteger no cenário atual e preservar a missão da comunicação pública”.

Nele, encontram-se resumidos trechos do Manual de Jornalismo da EBC, da Lei 11.562/2008 – que criou a empresa –, do Código de Ética Profissional da EBC e do Código de Ética dos Jornalistas. Do Manual de Jornalismo da EBC, por exemplo, destacou-se que “o interesse da sociedade brasileira é o foco essencial do jornalismo da EBC”; que deve ser garantido “o acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo” e que “no caso das entrevistas, é recomendável diversificar fontes e convidados para ampliar a  representatividade dos diversos grupos sociais, econômicos e culturais”. Outro trecho de destaque, também essencial, é o de que a EBC deve ter “autonomia em relação ao governo federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”.

Da lei de criação da EBC está o trecho em que “é vedada qualquer forma de proselitismo na programação” e, do Código de Ética do profissional da empresa, que “toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública”. Por último, do Código de Ética dos Jornalistas, é citado que “a cláusula de consciência é um direito do jornalista, podendo o profissional se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções”.

A Empresa Brasil de Comunicação, principal expoente do projeto de comunicação pública no País, segue em estado grave, na UTI, mas ainda respira por aparelhos. Atualmente, são três as ofensivas que vêm tentando minar a possibilidade de os jornalistas e radialistas concursados seguirem cumprindo a missão de garantir o direito à informação à população, conforme manda a Constituição Federal (artigos 5º e 223).

A primeira delas ainda vem diretamente do gabinete da Presidência da República. Jair Bolsonaro não apenas ameaçou durante as eleições que acabaria com a empresa como, até hoje, segue considerando publicamente a possibilidade de extinção ou privatização. A proposta, que contraria teses já colocadas pelo STF (de autonomia da empresa frente ao governo federal, conforme diz a lei 11.652/2008) e pelo Ministério Público Federal, via Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, também é rechaçada por organismos internacionais. Assim como o entendimento padrão adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o relator para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza, esteve no Brasil no início de setembro e deixou claro: “os países devem estabelecer formas de financiamento para que o sistema público de comunicação seja sustentável e independente. E não simplesmente terceirizar ou torná-lo uma empresa privada a mais”. Lanza também incluiu a EBC na afirmação de que “a liberdade de expressão está sob ataque no Brasil”.

As outras duas ofensivas recentes são o processo de aparelhamento pelo governo e pelo Exército brasileiro e, tão grave quanto, a proliferação de casos de censura aos jornalistas e radialistas. Em relação ao primeiro, basta verificarmos a programação da TV Brasil (com reflexos na Agência Brasil e nas rádios da EBC). Enquanto programas de valorização da cultura brasileira foram retirados recentemente do ar, como o “Antenize” e o “Trilha das Letras”, os programas “Faróis do Brasil” e “Fortes do Brasil” garantem entrevistas semanais com membros das Forças Armadas, principalmente da Marinha. Já o Exército, uma das principais forças de sustentação do governo e que hoje está na presidência da EBC, é agraciado com reportagens que enaltecem sua atuação nos telejornais e demais programas jornalísticos da casa. Um caso grave recente será a exibição, nos dia 1, 2 e 3 de outubro, de uma série de reportagens realizada pela TV Bandeirantes chamada “Missão Brasil”. Agora, como se não bastassem as matérias próprias da EBC, o Exército se utiliza da audiência da TV pública para veicular trabalho feito por uma emissora privada, que enaltece as ações dos militares.

Tal formato de aparelhamento pelo Exército, inclusive, tido erroneamente como privilégio dos partidos políticos no País, vem sendo praticado em toda a esplanada dos ministérios e, claro, a estrutura que dispõe a EBC hoje é vista como estratégica. Aliada à tentativa de fazer aumentar a popularidade do governo, a ocupação de cargos comissionados na EBC para garantir a veiculação de tais programas é uma forma de proselitismo, o que contraria a lei de criação da EBC.

Já na ponta, na produção cotidiana de reportagens, a tática adotada é a proliferação do medo nas redações. Mesmo que aprovados por concurso público, os trabalhadores da EBC temem retaliações e perseguições, além do fechamento ou extinção dos veículos públicos. Ainda que nos governos anteriores a independência financeira da empresa não tenha sido garantida – claramente um erro histórico – o fato é que hoje o governismo e as censuras de conteúdo passaram a funcionar como “política institucional”. Sobre o governismo isso é explícito, já que foram unificadas as redações da TV NBR, de divulgação de atos do governo federal, com a TV Brasil, pública, voltada aos interesses da sociedade. Hoje, o mesmíssimo texto que entra no programa de rádio A Voz do Brasil, às 19h, entra no telejornal Repórter Brasil, da TV “pública”, apenas 1 hora e 15 minutos depois. E na produção de conteúdo as censuras são recorrentes.

O caso mais grave desse ano ocorreu no final de abril, quando todos os veículos da EBC não puderam usar os termos “golpe militar” e “ditadura militar” para se referirem ao golpe de 1964. Ou seja, na sua volta ao poder, 35 anos após a ditadura, o Exército usa a comunicação pública para censurar a própria história do País. Já mais recentemente, diversas “reportagens” foram veiculadas para enaltecer as escolas cívico-militares, sem contraponto, sem o chamado “outro lado”, sagrado no jornalismo. No último mês também houve caso de um especialista censurado por abordar criticamente o modelo de segurança pública do Brasil. Ou seja, nesse caso, não foi o repórter ou o editor que escreveu o texto, mas sim a opinião de um especialista em segurança pública.

Diariamente, também diminuiu a cobertura de movimentos da sociedade civil organizada, em claro descumprimento da missão principiológica da EBC, de pluralidade de fontes para promoção do acesso à informação. O mesmo vale para a cobertura de temáticas relacionadas aos direitos humanos, aos negros, mulheres e LGBTs. Ou seja, pautas diárias de qualquer TV pública pelo mundo, uma das razões de existir do sistema público, agora entram em menor quantidade para não “desagradar” o conservadorismo do presidente da República. E há mais exemplos, como reportagens que enaltecem a reforma da Previdência, com pouquíssimo espaço para o debate, para as divergências, uma vez que a opinião de centrais sindicais, por exemplo, virou raridade na EBC. Ainda mais recente, sobre o aumento do desmatamento e a repercussão internacional das queimadas criminosas na Amazônia, textos que citavam a diminuição do efetivo do Ibama e da Funai também foram retirados das matérias. Até reportagens com as enormes filas de desempregados em São Paulo, que entram na maioria dos órgãos de imprensa do País como forma de prestação de serviços, foram retiradas de veículos da EBC.

Fica claro, portanto, que esse minimanual produzido pelo Sindicato também serve como uma forma de lembrar ao governo federal e à diretoria da empresa que os trabalhadores – ao questionarem a linha editorial e não se calarem frente às censuras – estão amparados pela lei e pela ética profissional. E esses mesmos trabalhadores vão utilizar tais instrumentos no enfrentamento ao horizonte resguardado para a empresa, de ameaça de privatização ou extinção.

Afinal, ressalte-se que essa possibilidade não é uma “invenção” dos empregados. Prova disso é que o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, responsável pela EBC, ainda não retificou sua afirmação, do final de agosto, de que a empresa entraria na próxima lista do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), órgão que dá andamento às privatizações. Isso deixa claro que acabar com a empresa que sustenta a comunicação pública no Brasil segue na mira do governo. O problema é que essa bala não atinge apenas os funcionários, ouvintes, leitores e telespectadores da EBC. Ela também atinge, em cheio, a democracia brasileira. E é por isso que há, e seguirá havendo, a devida resistência.

*Lucas Krauss é jornalista concursado da EBC, diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF, mestre em Políticas de Comunicação pela UnB e integrante do Intervozes

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