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A tragédia socioambiental de Brumadinho segue pouco falada

Foco excessivo em tragédias pessoais apaga debate sobre exploração predatória e sobre outros modelos de desenvolvimento

A tragédia de Brumadinho vai muito além do que se noticiou (Foto: André Mantelli)
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Tragédia, desastre, acidente. Faz um mês, completados no dia 25 de fevereiro, que essas palavras são comumente usadas pela mídia brasileira e também estrangeira para descrever o rompimento da barragem da Vale na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Uma situação na qual 182 pessoas já foram confirmadas como vítimas fatais e 126 continuam desaparecidas.

Somado a isso, 133 quilômetros de Mata Atlântica foram devastados, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBMA). E o rio Paraopeba foi declarado com qualidade péssima ou ruim em pelo menos 300 km, segundo levantamento da ONG SOS Mata Atlântica e de pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em linguagem popular e mais direta: um rio morto em grande parte de sua extensão.

O conceito de tragédia é desgraça, infortúnio, calamidade. No vocabulário do teatro, é uma ação dramática com acontecimento terrível, inesperado, sob o tom do inevitável. Acidente, por sua vez, significa acontecimento casual, fortuito, inesperado, ocorrência. É mesmo disso que estamos falando no caso de Brumadinho? A cobertura midiática está dando conta do que significa um acontecimento como esse no território brasileiro?

No caso em questão, a empresa mineradora Vale faz parte de um contexto em que há procedimentos de licenciamento ambiental e de operação estabelecidos e que precisam ser respeitados. Além disso, existe uma obrigação em relação à gestão de riscos com produção de documentos e pareceres técnicos que precisam ser enviados e analisados periodicamente por órgãos públicos de controle. Falar de tragédia ou acidente, nesse caso é, portanto, tirar a responsabilidade da empresa e do Estado brasileiro por algo que sim, poderia ter sido evitado.

Como ocorre com frequência no modelo tradicional de jornalismo, a identidade coletiva vem sendo suprimida para dar lugar às histórias individuais. O foco em dramas pessoais desloca do roteiro jornalístico a dimensão social e ambiental do fato, negligenciando um debate sobre modelo de desenvolvimentos e modos de vida em disputa. É nesse ponto que o conceito de tragédia ganha uma dimensão ainda mais dramática.

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Isso não quer dizer que histórias impactantes devam ser negligenciadas, pelo contrário, significa que o jornalismo precisa relacionar a história individual ao seu contexto. Se, por exemplo, uma agricultora ou um grupo de famílias que trabalhava junto à terra teve sua horta soterrada pela lama, isto não é exemplo isolado. São quase duas mil propriedades rurais registradas em Brumadinho. A dimensão socioambiental coletiva precisa ser apontada.

Assim como a aldeia indígena Pataxó, a 22 quilômetros do centro da cidade e absolutamente conectada e dependente do rio Paraopeba, não é apenas uma ilustração de um drama. O que está em jogo ali é a disputa por modos de vida, pelo direito de existência e ocupação de um território, frente a uma atividade econômica que tem trazido situações recorrentes de devastação.

Na região de Brumadinho, não há apenas mineração, há agricultura familiar – inclusive com projetos de produção sem agrotóxicos –, ecoturismo, pesca e, mais do que isso, diferentes formas de organização social e de existência.

Desde os anos 1990 têm crescido no mundo denúncias sobre o fato de projetos econômicos mais predatórios e com mais riscos de acidentes serem autorizados em locais onde há comunidades historicamente marginalizadas. Os movimentos por justiça socioambiental são os principais postuladores deste debate. Cruzam-se aí questões relacionadas ao racismo, à desigualdade de gênero e à lógica patriarcal, às diferenças de classe e de participação social, entre outras.

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As vidas e os corpos que já são mais expostos à violência na sociedade são também os mais vulneráveis e atingidos por impactos ambientais. A mídia, porém, não acompanha esse olhar crítico e, massivamente, segue o discurso de degradação ambiental mais genérico, global, sem questionar as relações de poder que permitem a exploração de certos territórios.

Em livro recém-lançado, intitulado The right to nature: Social Movements, Environmental Justice and Neoliberal Natures, Elia Apostoloupoulou e Jose Cortes-Vasques falam no agravamento desses conflitos e na ampliação das injustiças pelo mundo, especialmente nos países do hemisfério Sul e em áreas empobrecidas e marginalizadas nos países mais ricos.

Nesse contexto, essa falsa dicotomia natureza-sociedade coloca bens comuns, a força do trabalho e os corpos de mulheres a serviço do avanço do modelo de desenvolvimento atual, como nos lembra Silvia Federici em seu livro Calibã e as Bruxas: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Diana Ojeda no seu livro Género, naturaleza y política: los estudios sobre género y medio ambiente vai além e fala, por exemplo, no papel de estereótipos e valorizações da vida, sob o olhar das dominações baseadas no gênero, a partir de uma articulação entre o político e o ambiental.

A antropóloga Andrea Zhouri, uma das principais referências no debate de violações de direitos em relação à mineração, chama a atenção para uma virada de perspectiva necessária: “O que estamos vendo é uma dinâmica de catástrofe. Não se trata de acidente, mas de priorização de um modelo de exploração econômica que expulsa outros modos de vida”, disse, em seminário organizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para debater Brumadinho.

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Controle da informação impede debate

Outro ponto que chama atenção na cobertura da mídia é o espaço de fala. Uma análise do discurso aprofundada seria necessária para dar a dimensão precisa dessa relação. Há, no entanto, uma narrativa geral dos principais veículos de mídia. Nos primeiros dias, as respostas da Vale ao acontecimento ocuparam lugares de destaque na cobertura, por exemplo. Havia a narrativa do desastre e, ao lado, rapidamente, as explicações, a narrativa de um acidente e das compensações que estavam sendo negociadas.

A palavra “doação”, em referência aos valores emergenciais repassados pela companhia às famílias atingidas, não foi posta em xeque com frequência, por exemplo, mesmo diante da batalha que se travava por direitos. Em alguns casos, o pagamento da indenização foi apresentado quase como uma responsabilidade social voluntária da empresa.

No caso brasileiro, a concentração dos meios de comunicação acaba dificultando a circulação de diferentes pontos de vista e de diferentes narrativas, como mostram os dados do Media Ownership Monitor (MOM), lançado pelo Intervozes, em parceria com a Repórteres sem Fronteiras.

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Sob a mesma lógica, uma busca pela palavra “Brumadinho” no Google também traz como primeiro resultado um anúncio de uma página criada pela empresa, que apresenta ações para “apoiar as pessoas atingidas”. Certamente a empresa pagou ao Google para ser priorizada nas buscas, o que não é proibido. No entanto, mais uma vez, o poder econômico subjacente ao controle da informação no Brasil acaba por determinar a narrativa construída na opinião pública.

Enquanto isso, a situação nas localidades mais atingidas se agrava. Andar pelos bairros do Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira, ambos em Brumadinho, é muito impactante. O ar é pesado, misturando o calor, o cheiro da lama e de tudo que está em decomposição no local. São muitos os relatos de pessoas que já sentem impactos na respiração.

Após dias fazendo entrevistas, senti algo similar a uma poeira, mas que não parecia sair das vias respiratórias. Tive dores de cabeça por outros quatro dias. O fotógrafo com quem trabalhei em parceria teve febre no dia em que passou a maior parte do tempo em meio à lama de rejeitos. Ainda não há informações detalhadas sobre todos os contaminantes presentes na lama, nem sobre os impactos na saúde.

Jornalismo independente enfrenta intimidação

No que diz respeito à documentação jornalística da situação, também houve outros desafios. Quando não identificados como jornalistas de veículos da mídia tradicional, surgem mais obstáculos. É o cotidiano da mídia independente, alternativa ou comunitária no país. Em uma das entrevistas, na casa de um produtor rural que perdeu todos os animais devido à avalanche da lama, fui seguida por um policial militar.

Depois de receber uma ligação, ele passou a impedir que fotografássemos ou fizéssemos qualquer tipo de documentação, recusando-se a explicar o motivo. Chegou a ameaçar pegar o cartão de memória da câmera, o que constitui uma situação de intimidação da atividade jornalística, em uma situação na qual havia autorização do morador para a fotografia e com caráter de informação de utilidade pública. A vista da casa era diretamente voltada para o ponto onde houve o rompimento da barragem.

Duas semanas após o rompimento da barragem em Brumadinho, o número de jornalistas nas comunidades atingidas já não era mais tão grande. Se por um lado, muitos moradores e moradoras estavam cansados de tanta exposição sobre suas histórias e da própria abordagem de repórteres, por outro temiam o abandono. Eles começam a perceber que é exatamente quando as câmeras e os holofotes vão embora que a situação se torna ainda mais difícil.

Muitas perguntas em aberto

Na cobertura de um mês do rompimento da barragem, alguns veículos deram mais um mergulho na história, em diversas reportagens, pessoas atingidas apareciam repetindo a dificuldade da passagem do tempo sem respostas, muitos ainda em busca de parentes, de compromissos com indenizações, de acompanhamento do poder público para garantia de direitos básicos.

Enquanto isso, o modelo de mineração segue não sendo questionado. Na Europa, por exemplo, as condicionantes ambientais e sociais para a mineração são endurecidas e a atividade econômica perde a força. Já o Brasil acelera licenças ambientais, mesmo tendo no currículo duas das maiores devastações ambientais da história – antes a barragem do Fundão, há três anos, em Mariana, e agora Brumadinho, sem contar os impactos e as vulnerabilidades expostas em outras localidades.

Michele Ramos, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), deixa o questionamento: “A maior parte do minério extraído não fica no Brasil, mas os custos ambientais e sociais sim, e são enormes para a população. Precisamos olhar para a atividade de mineração como um todo e não apenas os casos isolados. O que poderia ser evitado não é acidente, nem tragédia. O que aconteceu em Brumadinho e Mariana é um crime ambiental”.

*Foto: André Mantelli

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