Intervozes

A mídia e a banalização da violência contra crianças e adolescentes

Essa situação evidencia aquilo que há décadas pedimos: é urgente a regulação da mídia no Brasil

O programa policialesco Correio Manhã, da TV Correio/Paraíba.
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Por Mabel Dias

Recentemente, dois casos de violência contra adolescentes divulgadas pela mídia chamaram a atenção da sociedade, demonstrando a ausência de segurança para meninas no Brasil. O primeiro aconteceu no Rio de Janeiro contra uma menina de 12 anos, que foi sequestrada na porta da escola onde estudava e levada para o Maranhão por um homem de 25 anos. O outro, também no Rio, uma adolescente de 17 anos havia sumido de casa, após marcar um encontro com um adulto pelas redes sociais. A família conseguiu encontrar ambas. Mas nem sempre é o que acontece.

Além dos dois episódios, na segunda 27 um adolescente assassinou uma professora e feriu outras cinco pessoas em uma escola em São Paulo. Ao que tudo indica, o crime foi motivado por um episódio de racismo cometido pelo adolescente e repreendido pela professora atacada. Apesar de não ser o foco deste artigo, vale destacar o papel da mídia e das plataformas digitais na disseminação de discursos de ódio, que contribuíram para que esse triste episódio de violência acontecesse.

Esses fatos, infelizmente, não são isolados. Quase diariamente, crianças e adolescentes, principalmente meninas, são vítimas de algum tipo de violência no país. A mídia, que deveria contribuir para a garantia dos direitos deste público, tem se tornado um sistemático violador, expondo crianças, adolescentes e suas famílias, em busca de audiência e de lucro, gerado por meio de matérias sensacionalistas e antiéticas, exibidas no horário do almoço ou no café da manhã, por meio dos programas policialescos

Dados revelam o horror 

Em 2020, uma criança de apenas 10 anos foi violentada sexualmente pelo seu tio. O estupro resultou em uma gravidez indesejada, que a fez sair do estado onde morava para ter o direito ao aborto garantido por lei em outro local. O caso teve repercussão nacional, devido a brutal violência sofrida pela criança e a perseguição e violações de direitos praticadas contra ela e a sua família pelo governo de Jair Bolsonaro, capitaneados pela então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, e por fundamentalistas religiosos. Porém, nem sempre o direito ao aborto legal em casos de estupro é respeitado. No estudo realizado pela Rede Feminista, Direitos Sexuais e Reprodutivos do Paraná, em média uma criança é mãe a cada vinte minutos no Brasil. 

O estudo “Estupro presumido no Brasil: caracterização de meninas mães em um período de dez anos (2010 – 2019)” revela que 252.786 meninas de 10 a 14 anos, além de 12 meninas com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos. De acordo com os/as pesquisadores/as, isso representa uma média de 25.280 casos de gravidez de vulnerável por ano, ou a prática de 70 crimes de estupro por dia! Os dados mostram que 4.948.724 adolescentes de 15 a 19 anos foram mães, o que corresponde a 17% dos nascidos vivos. 

Pesquisa publicada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, revela um alto índice de crianças violentadas no Brasil, abrangendo os anos de 2017 e 2018: 63,8%. Quando nos detemos ao gênero das crianças, o estupro de vulnerável atinge, em sua maioria, as meninas: 81,8% delas já foram vítimas de violência sexual. É o crime com maior incidência contra crianças, dentre todos os analisados pelos pesquisadores do Anuário. 

A exploração sexual infantil também foi mapeada pela pesquisa. Entre 2019 e 2020, foram identificados 3.651 pontos vulneráveis à exploração sexual em rodovias brasileiras, o que significa um aumento de 47% em relação ao total identificado no biênio anterior. A violência sexual acontece, em sua grande parte, dentro de casa, por pessoas que deveriam protegê-las, como pai, avô ou tio. 

Série de TV banaliza violência

Mesmo diante da gravidade desses números, que refletem o descaso do Estado brasileiro com a  proteção à vida das crianças e adolescentes, a TV Correio, emissora afiliada à RecordTV na Paraíba, optou em apoiar a produção de uma minissérie que traz em seu título um nome preocupante: “Novinha”. De acordo com a matéria, veiculada no site da Prefeitura Municipal de João Pessoa, que também apoia a produção, a série vai tratar sobre “prostituição infantil”. O site da Prefeitura dá destaque e comemora a primeira produção da João Pessoa Film Comission, que é vinculada à Fundação Cultural de João Pessoa (FUNJOPE). Na foto que ilustra o release, só homens brancos reunidos. “Essa produção injeta diretamente R$ 1,2 milhão na economia local”, anuncia o release, em tom de comemoração. Dinheiro público que poderia ser investido para conscientizar a sociedade e combater a exploração sexual infantil, está sendo usado por uma gestão pública para banalizá-la. 

Os produtores informam que “Novinha” vai falar de “valores, do amor paternal, contando a trajetória de uma menina de 17 anos que vive da prostituição”. Para agravar a situação, a Prefeitura anuncia que a produção deve ser lançada no Dia da Criança, 12 de outubro. Mais um desrespeito à infância. 

A concepção da série mostra um retrocesso em relação aos direitos das crianças e adolescentes. Como bem explicam os pesquisadores e ativistas de organizações, como a Casa Pequeno David, em João Pessoa, não há adolescentes nem crianças que se prostituem, como insinua a minissérie. O que existe é a exploração sexual cometida por adultos. A maioria delas são estupradas por parentes, convivendo com a violência desde pequenos e encontrando pouco ou nenhum amparo do Estado, mesmo estando previsto em lei, como no Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Como bem disse o jornalista Fernando Molica, na reportagem “Novinha: a palavra que virou palavrão”, publicada na revista piauí, em março de 2018, esta expressão faz referência à pedofilia e é um código que passou a ser usado por criminosos que violentam crianças. A palavra não está apenas na série que a Prefeitura de João Pessoa e a TV Correio apoiam, mas se tornou banal em músicas de diversos estilos, sinalizando a disponibilização de crianças e adolescentes para o sexo. O jornalista Fernando Molica explica na matéria que o termo “Novinha” consolidou-se em 2016, a partir de buscas no Google que indicavam sites de sexo. Entrevistada pelo jornalista, a defensora  pública Arlanzza Rebello afirma que tal expressão define um produto, um objeto de prazer para os homens, banalizando a violência contra menores de idade e facilitando a prática de crimes, como o estupro coletivo. A pedofilia e a exploração sexual são crimes que mutilam a infância e a adolescência de milhões de brasileiros. Então, por que a TV Correio e a Prefeitura de João Pessoa apoiam este tipo de projeto?

Em 2011, a TV Correio, foi denunciada pelo Ministério Público Federal da Paraíba por ter veiculado cenas de estupro de uma adolescente de 13 anos, o que veio a gerar uma Ação Civil Pública contra a emissora e o programa policialesco, Correio Verdade. Na ação, o MPF/PB pedia ao Poder Judiciário a suspensão do programa por quinze dias, pagamento de uma indenização à vitima e multa por danos morais e coletivos no valor de R$ 5 milhões, que deveriam ser depositados nos fundos municipais da criança e do adolescente das cidades de João Pessoa e Bayeux. No entanto, a juíza federal Cristina Garcez indeferiu todos os pedidos do MPF, aplicando apenas uma multa no valor de R$ 200.000,00 por danos morais coletivos.

Regulação da mídia

A professora da UFRN, Janaine Aires, em seu artigo “Os limites da ação do sistema judiciário”, publicado no relatório Violações de Direitos na Mídia Brasileira”, da ANDI, analisa que a fragilidade do sistema de responsabilização das emissoras de TV permite que elas continuem exibindo reportagens ou minisséries como esta, que violam direitos humanos. E o problema perpassa as esferas dos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. 

O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que garantem os direitos de mulheres, crianças e adolescentes, entre eles, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, como também possui a sua própria legislação, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), a Lei Maria da Penha e dispositivos de autorregulação, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e os Princípios Camdem sobre Liberdade de Expressão e Igualdade. O que falta, na prática, é que estes dispositivos sejam respeitados e aplicados efetivamente. 

O Intervozes tem denunciado sistematicamente as violações dos direitos humanos, praticados pelos programas policialescos no rádio e na TV, e produzindo relatórios e pesquisas que subsidiam estas denúncias.

No documento “Parâmetros para uma regulação democrática dos conteúdos dos programas policialescos” são apontadas algumas medidas que podem ser realizadas para coibir violações de direitos de grupos vulnerabilizados, como crianças e adolescentes na mídia, como a aplicação de multas com valores significativos, suspensão temporária da programação e revogação da licença e aplicação de sanções cumulativas, em caso de reincidência, como é o caso da TV Correio.

A inação do Estado abre espaço para que as violações de direitos humanos ocorram livremente, sem qualquer punição efetiva para as emissoras. Essa situação evidencia aquilo que há décadas pedimos: é urgente a regulação da mídia no Brasil.

Mabel Dias é jornalista, feminista, mestra em Comunicação e Culturas Midiáticas pela UFPB, integrante do Intervozes, FINDAC e observadora do Observatório Paraibano de Jornalismo.

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