Colunas e blogs

A memória como caso de polícia e o tripé bambo da comunicação brasileira

EBC denuncia site que mantém viva a memória do Conselho Curador da empresa, cassado pelo Governo Temer

A Ancine e a Anatel serão as responsáveis pela regulamentação. Foto: Istockphoto
Apoie Siga-nos no

No dia 27 de fevereiro passado, fui chamada a depor na delegacia especializada em crimes cibernéticos da Polícia Federal, em São Paulo, devido a uma denúncia feita pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) contra o domínio conselhocurador.ciranda.net, pela reprodução de seus conteúdos e materiais gráficos. Por trás dessa ação, ou muito antes de virar caso de polícia, está um equilibrismo que se arrasta por toda história midiática brasileira: a tentativa de manter, com apenas duas pernas hipercontroladas, mas que não se bastam, o tripé do sistema de comunicação no Brasil.

Primeiro vamos ao objeto da denúncia. O site reúne as reações de várias vozes da sociedade, no Brasil e fora, contra o desmonte da empresa de comunicação pública, além – e principalmente – os registros da vida do Conselho Curador da EBC, que foi extinto em 2016. A bem da verdade, o site nem hospedava tais registros quando a ação foi movida, tendo apenas links para as páginas e conteúdos mantidos no portal da própria empresa. Foram linkados em 2018, logo quando a EBC tentou intimidar, por meio de notificação extrajudicial, as responsáveis técnicas pelo domínio utilizado. Em suma: uma ação inusitada contra a publicação de links para conteúdos públicos da EBC – uma novidade entre as modalidades de censura até então sabidas. Cabe lembrar que os conteúdos da EBC são de livre reprodução.

É importante também entender o porquê do site. O Conselho Curador da EBC, formado em sua maioria por indicações da sociedade civil, mas também dos trabalhadores da empresa, representantes do Congresso Nacional e com algumas cadeiras cativas do próprio governo, foi extinto pela Medida Provisória 744, uma das primeiras, senão a primeira das medidas do governo de Michel Temer, ato contínuo à aprovação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Leia também: A EBC e a necessidade do debate honesto sobre a comunicação pública

O Planalto sob nova direção mirou em cheio na extinção da participação social na gestão da comunicação pública, livrando-se da fiscalização dos conteúdos pela sociedade e da autonomia editorial em relação ao governo. Com a medida, integrantes do Conselho e também o presidente da empresa, Ricardo Melo, tiveram seus mandatos interrompidos. A MP seria transformada em lei em janeiro de 2017. O que viria depois é o desmonte conhecido por todos.

Nascia, porém, no seio da sociedade, e extraoficialmente, a figura do Conselho Curador Cassado da EBC, reunindo também conselheiros mais antigos, que se mantiveram ativos, acompanhando à distância e denunciando a desfiguração da EBC e resguardando a memória do colegiado. Ao lado desta resistência, as frentes criadas na sociedade e no Parlamento, como a Frente em Defesa da EBC e a Frente Parlamentar pelo Direito à Comunicação, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, com suas centenas de entidades e os trabalhadores da empresa continuaram se mobilizando para o que sobrou da EBC não dar lugar a uma terra arrasada. Esta é uma ameaça constante do novo governo, que ora a quer fechada, ora a quer transformada em um ente de comunicação governamental.

Leia também: A MP de Temer para a EBC e o novo golpe na comunicação pública

Entendemos, rapidamente, que a denúncia não visava criminalizar um site, mas silenciar a história de um projeto de comunicação pública e a sociedade mobilizada em sua defesa.

A denúncia, acreditamos, será arquivada por não resistir a uma checagem dos fatos. Mas, por justiça, a instrução do inquérito acabou sendo importante ao acolher depoimento sobre a conexão com a história do desmonte da EBC, a composição e representatividade do colegiado, e a disposição de seus integrantes de manter essa memória.

Leia também: Intervenção de Temer sinaliza desmonte da EBC

A Constituição de 1988 estabeleceu o sistema de comunicação no Brasil como um tripé. Deve ter a parte privada, a estatal e a pública. E a última não pode ser considerada pública sem que o público seja parte determinante de sua gestão. A Constituição diz também que os setores são complementares. Ou seja, sem um deles, temos um sistema bambo, em constante desequilíbrio. E a democracia brasileira sofre com isso.

O Conselho Curador da EBC constituía um carimbo de “comunicação pública” às atividades da EBC e cumpria agendas delicadas, como buscar soluções para o fato de que os veículos da empresa pública, ao darem voz à religião, só contemplavam a religião católica. Quando as TVs abertas abandonaram a programação infantil, porque não podiam lucrar com publicidade para crianças, o Conselho vigiou para que a TV Brasil mantivesse atenção a esse público. Também assegurou lugar privilegiado ao cinema nacional. Quem falava vinha de cada região do Brasil, e de diversas áreas técnicas, artísticas, acadêmicas e profissionais, com representações étnicas e raciais, e equilíbrio obrigatório entre homens e mulheres, trazendo contribuições a todo sistema.

O Conselho tinha também em mente que sua experiência participativa deverá, um dia, inspirar novos mecanismos sociais de proteção a todo sistema de comunicação brasileiro, de neutralizar interesses estranhos ao seu equilíbrio e à sua sobrevivência, de impedir o assalto às concessões de radiodifusão por políticos coronelistas e combater o assédio dos poderosos à liberdade de expressão, de tornar o sistema plural e diverso, como é o Brasil.

Infelizmente, a mídia privada nunca se importou que os recursos da Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública, acumulada em cerca de 3 bilhões à época do desmonte, jamais chegassem ao seu destino. Enquanto isso, transmissores no interior do país minguavam sem reposição. Jornais e sites de grande alcance ajudaram a afundar a EBC com fake news sobre seu custo e orçamento e, algumas redes, junto com prefeituras sem compromisso público, se apropriaram de canais por onde deveria chegar o sinal da TV Brasil. Hoje não reagem quando o novo presidente da EBC, Alexandre Graziani, decide por fim à produção de TV em São Paulo e Maranhão. Um editorial do Estado de S. Paulo chega a pedir o fechamento de vez da EBC, questionando sua utilidade.

Esses setores também não se incomodam quando pequenas mídias fora do mainstream são asfixiadas. Não se escandalizam com a censura transformada em caso de polícia. Até se assustam enquanto o respeito à imprensa pelos altos mandatários do país se deteriora e seus jornalistas são atacados. Mas continuam se agarrando a um desequilíbrio que, em tese, lhes favorece. Ignoram o ladrão no vizinho e não enxergam toda a rua sob risco.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo