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Os sotaques ainda incomodam os donos da mídia

PL aprovado por comissão do Congresso propõe regulamentação da regionalização da produção do rádio e da TV, mas a proposta ignora demandas da sociedade

Os sotaques ainda incomodam os donos da mídia
Os sotaques ainda incomodam os donos da mídia
PL aprovado por comissão do Congresso propõe regulamentação do artigo da CF que trata da regionalização da produção do rádio e da TV, mas a proposta ignora demandas da sociedade
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Por Bruno Marinoni*

Um projeto de lei que pretende regulamentar o artigo 221 da Constituição foi aprovado recentemente por uma comissão especial no Congresso Nacional. O texto trata da regionalização da programação cultural, artística e jornalística das emissoras de TV e rádio. Poderia ser um motivo de comemoração, pois há 25 anos espera-se que as indicações contidas em nossa Carta Magna possam virar realidade e modificar o modelo que faz com que o que se vê na mídia não passe, com frequência, da pasteurização dos nossos costumes, sotaques e opiniões, nos quais mal nos reconhecemos.

Quando o sistema nacional de comunicação foi se consolidando, nas décadas de 60 e 70, acompanhando e azeitando o processo de integração do mercado nacional, os programas de televisão locais foram sendo substituídos pela produção centralizada no Rio de Janeiro e São Paulo. A autonomia e criatividade das diversas regiões brasileiras foram sendo suplantadas pelas chamadas “redes” nacionais, inauguradas com alarde pela Rede Globo ao lançar o seu “Jornal Nacional”, que marca a entrada no novo ciclo de concentração monopolística. A integração nacional promovida pela ditadura – pois o Estado construiu nessa época toda a infraestrutura necessária à consolidação das redes- centralizou, assim, os mecanismos de produção cultural e ideológica.

A centralização excessiva traz um problema sério para a democracia, haja vista que a liberdade de expressão “nacional” foi construída, no plano da comunicação, por meio da supressão da diversidade regional e do esvaziamento dos “parques de produção cultural” espalhados pelo país. Em outras palavras, as empresas de comunicação, interessadas fundamentalmente no lucro, enxugaram seus custos, entregaram-se à lógica das redes nacionais e, com isso, desfizeram-se dos instrumentos necessários para a consolidação de indústrias culturais locais e regionais. Nesse contexto, praticamente se impossibilitou qualquer possibilidade de produção independente, criando um sistema de vassalagem entre “cabeças-de-rede” e “afiliadas”.

É isso que a sociedade quer mudar. Não obstante, o texto do relator Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado, “a toque de caixa”, no dia 11 de julho, pela Comissão Mista de Consolidação das Leis, não enfrenta esse cenário. Ele desconsidera discussões que se prolongam há décadas, bem como o projeto de lei da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), sobre o mesmo tema, que completa 22 anos (!) de tramitação, em 2013. Aparentemente, o regente da banda atual é o mesmo que impediu que a regulamentação desse ponto da Constituição avançasse, conforme alertam organizações que atuam no campo das comunicações.

O projeto aprovado estabelece um tempo obrigatório de veiculação de produção regional de pouco mais de 10 horas (616 minutos) semanais em cidades que possuam entre 1 e 5 milhões de habitantes. Ou seja, apenas cerca de 6% da programação deve ser produzida em âmbito regional. Além disso, a redação aprovada não prevê o horário de exibição da programação local, permitindo que as cotas sejam cumpridas na madrugada, quando a audiência é bastante baixa e não há muito interesse dos anunciantes que financiam a TV “aberta”.

A incorporação das transmissões, em cadeia nacional, de pronunciamentos da presidência, de propaganda eleitoral obrigatória e de campanhas de interesse nacional são descontados nas horas reservadas ao cumprimento da cota regional. Abre-se, também, a utilização do Fundo Nacional da Cultura, presente na Lei Procultura, para o financiamento de produção por parte de empresas que já concentram propriedade no setor. No projeto de Jandira Feghali – aprovado na Câmara em 2013, mas encostado no Senado -, a cota praticamente dobrava, estando previsto um mínimo de 22 horas semanais para cidades com mais de 1,5 milhão de habitantes e 17 horas para aquelas com mais de 500 mil, sendo obrigatória a transmissão no período entre as 5h da manhã e a meia-noite. Há, ainda, outras distorções.

Outra vítima é a produção independente, isto é, aquela que não possui vínculos com o oligopólio. O projeto não garante reservas para essa produção, quando teria, conforme o texto de 1991, 40% de espaço garantido nas emissões televisivas. A redação da Comissão Mista vai de encontro às mudanças registradas desde o estabelecimento da nova lei da TV por assinatura (12.485/11), que modificou o cenário da produção independente no país e que, portanto, deveria servir de inspiração para a regulamentação.

Podemos nos fazer de simplórios e dizer que é “intrigante” que a aprovação deste projeto surja exatamente quando a sociedade está mobilizada para a implementação de um projeto de lei de iniciativa popular que regulamenta artigos constitucionais relacionados à comunicação eletrônica. Mas esses setores não querem apenas novas leis, querem regras que levem à democratização dos meios de comunicação, de modo que todas as regiões do país possam ter a capacidade de produzir e expressar a própria imagem.

Para avançamos na efetivação da democracia, precisamos ser mais incisivos na busca pela descentralização e garantia da diversidade, valorizando a pluralidade e riqueza que possui nosso país. E a democracia real somente se constrói com a participação dos interessados e da sociedade, de forma geral. Não nasce de pequenas comissões que ignoram os longos e amplos debates lastreados nas demandas diversas de uma sociedade rica em singularidades.

* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE.

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