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O Estadão quer saber “claramente” o que Bolsonaro pensa da democracia. Ah, vá…

Nada expressa mais a hipocrisia da mídia no apoio e rechaço a Bolsonaro do que os editoriais do jornalão. São pérolas para a história

O presidente Jair Bolsonaro (Foto: Alan Santos/PR)
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É inescapável a vergonha alheia que suscita os arrependidos pelo voto em Jair Bolsonaro. O leitor mais atento há de se lembrar da imagem de um grupo de carteiros e funcionários dos Correios fazendo arminha com as mãos. Hoje estão em greve.

Embora não seja a melhor das estratégias ralhar com os compungidos ou ficar a avisá-los de que “eu avisei”, é preciso transmutar-se em Madre Teresa de Calcutá para não considerá-los, no fundo e em segredo, perfeitos idiotas.

Cada qual a lamber sua ferida, há toda sorte de arrependidos. O “pobre de direita”, o exportador do agronegócio, o funcionário público, o Frota, o Lobão, a Maitê Proença, a Veja. Tio Rei nunca foi cabo eleitoral da direita sertaneja e há muito defende, com informação e consistência, a Justiça imparcial – embora tenha colaborado para que a coisa desse no que deu.

Em todos esses casos, ainda que o oportunismo por vezes supere a ignorância, os compungidos encontram abrigo no guarda-chuva cada vez mais amplo da defesa das “vias democráticas” às quais se referiu o poeta surrealista Carluxo, sempre no Twitter.

Há, porém, um arrependido indesculpável – aquele que não se avexa do exercício continuado da hipocrisia. O maior representante disso é o jornal O Estado de S. Paulo e seus editorialistas, para quem o idiota perfeito certamente é o seu próprio leitor.

Neste dia 11, o Estadão nos brinda com um texto intitulado “Flerte com o golpismo”. A linha fina é uma pérola: “Faz-se urgente e necessária a manifestação de Jair Bolsonaro. Ele precisa dizer claramente aos brasileiros o que pensa sobre a declaração de seu filho Carlos”.

“Por vias democráticas”, escrevera Carluxo, “a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”.

Bolsonaro passou os últimos 30 anos a defender a ditadura, celebrar torturadores e homenagear policiais assassinos. Autorizou os quartéis a celebrar o golpe de 1964, deu declarações exaltando Pinochet, desmantelou a Comissão da Verdade e investe descaradamente contra todas as instituições democráticas.

Mas o Estadão, indignado, acha que “ele precisa dizer claramente aos brasileiros o que pensa” sobre o desapreço do filho pela democracia. Mais claramente ainda? Ah, vá…

O mesmo Estadão publicou, em 8 de outubro do ano passado, logo depois do primeiro turno das eleições, o já célebre editorial “Uma escolha muito difícil”. Nele fica-se informado de que “o eleitor, que tradicionalmente privilegiou a moderação, a despeito do calor das campanhas, optou pelos extremos”.

Por um lado, “o truculento apologista da ditadura militar”, por outro, “o preposto de um presidiário”. A conclusão: “Não será nada fácil para o eleitor decidir-se entre um e outro”. Ao estabelecer a falsa paridade, fica claro que o Estadão já havia feito sua escolha muito difícil.

Na terça-feira 10 o blog de Leonardo Sakamoto, no UOL, trouxe uma importante entrevista com Paulo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP e um dos mais importantes pensadores brasileiros.

Arantes acha que “pode chegar o momento, daqui a três anos, em que Bolsonaro vai dizer ‘não admito nenhuma alternativa que não seja a minha reeleição’. Como já disse ‘não admito qualquer coisa que não seja minha vitória’, na eleição do ano passado”.

E alerta para o papel da mídia nesse processo. “A direita está assistindo isso (o programa de privatizações) e aplaudindo. Você vê pela esquizofrenia da mídia. Quando abre os jornais e acessa as grandes mídias convencionais, sempre começa por aquele grito de horror diante do ultraje moral, do que ele (Bolsonaro) está inflingindo à nação. Você vira a página, começa a normalização e positivação das reformas, da tributação, da Previdência, disso, daquilo. E todo mundo acrescentando seu pontinho positivo para melhorar, para aperfeiçoar. E ele vai indo. Ele vai se tornando imprescindível”.

Apenas faça este exercício com o Estadão. Exatamente assim.

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