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Nada de fuzis, muitas flores

Os tijolos de maconha do tráfico só existem por causa da proibição do consumo

Felipe Navarro (ilustração) - retirado do site antigo
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[Este é o Blog do Hempadão em CartaCapital. Acesse aqui o site]

A folha não se fuma. A onda vem da flor. Os tijolos do tráfico só existem por causa da proibição. E porque os jardins dos vizinhos estão mesmo mais verdes que o nosso.

Em debates contra o proibicionismo é muito comum ouvir o argumento de que a “a opinião da maioria deve ser respeitada”. Isso se refere às pesquisas que mostram que a maior parte da população no Brasil rejeita a ideia da legalização da maconha. Só que esqueceram de informar os entrevistados antes de fazer a pergunta.

Se pararmos na rua mais movimentada de qualquer capital do País e mostrarmos uma foto da flor da maconha para cem passantes, quantos saberiam se tratar de cannabis? Faça o teste você mesmo, caso queira, com a foto abaixo:

Foto: Cadu Oliveira

A menos que o entrevistado seja um usuário ou um estudioso sobre o tema, acho difícil matar a charada. E como uma planta pode ser tão amplamente consumida e odiada se a absoluta maioria não sabe nem a cara que ela tem?

Já vi diversas vezes maconheiros de longa data se emocionarem ao ver a flor de maconha pela primeira vez ao vivo. Também perdi a conta das vezes que vi não usuários de cannabis se impressionarem com o aroma e a aparência do que se chama, popularmente, do ‘camarão’ da maconha. Lá fora, o tal ‘bud’.

A folha, símbolo intercontinental da maconha, não se fuma. Ela é importante para captar luz e dar energia à planta, mas o efeito psicoativo da cannabis está, em sua maior parte, na flor. Aliás, nos canabinóides presentes nos cristais localizados nas inflorescências da erva. Visto bem de perto, são como cristais em gotas, pegajosas e com cheiro incrível, variando de acordo com os terpenos presentes:

Foto: Cadu Oliveira

Essas fotos acima contrastam, e muito, com aquilo que o senso comum está acostumado a ver nos noticiários. Aos quilos, ou melhor, em toneladas, a maconha prensada atravessa fronteiras internacionais e abastece o mercado ilegal nacional de norte a sul do País. Desta forma, a realidade canábica brasileira é dura.

Isso porque, para ‘facilitar’ o transporte, a utilização da prensa se tornou praxe dos fornecedores hermanos. Lá no Paraguai a maconha nasce e cresce com belas flores, mas quando é prensada e embalada se transforma naquele objeto que a mídia adora mostrar como resultado da eficiência policial em prender e apreender.

O que ainda não aprendemos é que, com o poder da prensa e com a cobertura rasa da mídia sobre o tema, nossa erva, no geral, se tornou horrível. Desgosto tanto para os habitantes locais quanto – e sobretudo – para turistas, que imaginavam encontrar aqui erva barata, não barata dentro da erva.

Sim, a maconha prensada é maior ‘sujeira’, em todos os sentidos. Além de objeto ilícito é também um apanhado de partes da planta que não se deveria fumar: galho, folha, sementes… sem falar de outras impurezas recorrentes como insetos, outros vegetais, fungos e mofo.

Apesar de inadequada para usar como remédio, não são poucos os relatos de uso terapêutico, automedicamentoso, da maconha entijolada. O processo de prensagem faz com que parte dos psicoativos se percam no caminho, mas ainda há, ali, alguma concentração, mesmo que baixa, de THC, CBD e outros canabinóides.

Outro argumento muito comum dos proibicionistas é que a proibição visa proteger a saúde pública. Se esse discurso for dito de coração, então jamais, em tempo algum, pela própria saúde da população, deveriam defender a repressão, pois esta política faz com que o usuário acabe consumindo uma substância sem o menor controle de qualidade. E isso está longe de ser o ideal se for pensar do ponto de vista de saúde.

Não precisa ser maconheiro para concordar. Basta imaginar que seu filho ou filha, seu tio ou tia, seu funcionário ou sua patroa, sua vizinha ou seu melhor amigo, um dia podem querer ou precisar experimentar maconha. Será que a única opção que eles devem ter é o comércio ou o cultivo ilegal da erva? Infelizmente, aqui no Brasil esse ainda é o caminho principal.

Com isso, deixamos de aprender e de empreender no gigantesco mercado da maconha. O usuário é exposto não só ao produto de baixa qualidade, mas aos riscos inerentes à compra, posse e utilização da erva. A cifra oculta que move o tráfico internacional patrocina violência, enquanto nações que legalizaram colhem imposto do ‘camarão’ para investir em saúde, educação etc.

A legalização da maconha é, literalmente, “as flores vencendo os canhões”, como cantou Geraldo Vandré em 1968. Porque, acredite, vi maconha vendida legalmente em coffee shops de Amsterdã, dispensário da Califórnia e farmácias de Montevidéu. Todos comercializavam flores. Em nenhum deles vi fuzis ou pistolas.

Essa associação entre a maconha prensada e o tráfico armado é fruto da proibição. Os EUA sabem disso desde o início do século passado, pois conviveram com as máfias do álcool proibido.

O Brasil também deveria ter aprendido a lição, pois assiste há décadas o crescimento do crime organizado, que se fortalece a partir do monopólio do comércio de especiarias psicotrópicas, protegido pelo estado. Pesquisa do Instituto Sou da Paz revelou que 99% das ocorrências policiais do estado de São Paulo, de 2012 a 2017, apreenderam pequenas quantidades de maconha ou outras drogas.

Enquanto a proibição só acerta usuários e pequenos traficantes, no geral desarmados e sem antecedentes criminais, os grandes investidores desse mercado seguem impunes. Milionários, não pegam em armas nem moram em comunidades, mas fazem girar uma empresa que contrata jovens dispostos a matar e morrer pelo corre das notas. Juntamente com os tijolos de maconha vem a grande movimentação financeira e a segurança do negócio se dá pelo domínio territorial, pistolas, fuzis.

O ônus dessa política proibitiva, diferente do efeito da erva, não se restringe ao usuário. Todos nós sentimos o peso do prensado e, juntos, deixamos escapar a chance de ver nosso jardim mais florido.

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