Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Venezuela e EUA: enfoque anacrônico

Ao lidar com o governo Maduro, Barack Obama faz arriscado uso de uma estratégia ultrapassada

A percepção, pelos EUA, de que o governo de Nicolás Maduro é uma "ameaça" pode se tornar um problema de segurança na América Latina
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Desde o fim da Guerra Fria a noção de ameaça para as potências mundiais se transformou num “vale tudo”, que ampliou notavelmente o fosso entre percepção e realidade. Esta dupla via tornou o mundo mais perigoso e a paz mais incerta. Outra consequência adversa foi a dissociação entre a produção, comercialização e circulação de armas e os espaços em que ocorrem os conflitos que sim incidem sobre a segurança internacional (um exemplo é  a quantidade de armamento procedente da Ucrânia  apreendida no Rio de Janeiro). Naturalmente, a chamada globalização favoreceu este processo de dispersão e perda de controle.

É estreito o vínculo entre a identificação de ameaças e políticas de poder, o que quer dizer que existem muitas situações de riscos que não são considerados como tal por pertencerem a realidades e sociedades que não dispõem de meios para colocá-los na agenda. Assimetrias estruturais também incidem sobre a configuração de uma ameaça internacional. A intervenção internacional no Haiti em 2003, a partir de quando se considera este país uma ameaça à paz mundial, constitui um bom exemplo de uma ameaça pré-fabricada pela política de poder.

Do ponto de vista geopolítico, se bem não seja possível uma desconexão absoluta, existem diferenças importantes quanto à maneira como cada região se vincula à agenda da segurança internacional. Regiões incendiadas, como o Oriente Médio, contrastam com o mar da tranquilidade da Oceania. Já a América Latina representa um caso singular. A ausência de conflitos interestatais e de tensões causadas por diferenças culturais/religiosas garantem uma enorme estabilidade regional. Não obstante, a persistência de problemas sociais somada a crônicas carências institucionais comprometem a capacidade da autoridade pública (em seus mais diversos formatos) de exercer o monopólio da violência de acordo com as necessidades da cidadania. Este, porém, constitui um problema na região mas não da região, onde convivem Estados independentes e soberanos.

O fato de que esta região tenha constituído uma área de influência dos Estados Unidos, antes, durante e logo após a Guerra Fria, entretanto, borrou por muito tempo a fronteira entre a sua agenda estratégica e de segurança. Nos anos da bipolaridade, as diferenças ideológicas manifestadas no interior de uma área de influência eram interpretadas como uma ameaça às superpotências americana e soviética. Ao mesmo tempo, a desestabilização de cada esfera   era considerada um risco para paz mundial.

A fatiga do conflito leste-oeste, a efêmera ilusão da primazia liberal-que logo se perdeu com uma sobredose de securitização-, empurraram o sistema internacional para uma fase de transição sem horizontes, calendários e resultados claros. Neste, a manifestação de conflitos se tornou volátil, obedecendo a lógicas de poder e escapando com frequência da capacidade de controle multilateral.

América Latina foi a área que levou mais tempo para desvencilhar-se da condição de esfera de influência, uma virada regional lograda nas primeiras décadas do século XXI. O processo é recente e ainda motivo de vaivéns no relacionamento cotidiano dos países da região com os Estados Unidos. Esta nação, por sua vez, manifesta de forma evidente as contradições de sua própria transição numa ordem mundial marcada pela mutação. Ao mesmo tempo em que com Cuba derruba o último pedaço de seu próprio muro de Berlim, procura erguer um novo com a Venezuela fazendo uso de uma anacrônica equação estratégica que confunde diferença ideológica com segurança interna.  Este foi o teor da recente medida executiva do governo Obama que considera o governo venezuelano uma “ameaça inusual e extraordinária à segurança nacional e à política externa”. Trata-se de uma percepção que pode se tornar um problema de segurança na e da região.

Monica Hirst é Profesora titular do Departamento de Economia y Administración na Universidad Nacional de Quilmes e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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