Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Política migratória dos EUA: tempos de crueldades cínicas

Organismos de integração, que já foram atuantes pela autonomia regional, estão em mute. Imigração deve ser entendida como grito de sobrevivência

Cerca de 2 mil crianças foram separadas de suas famílias
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Por Karen Honório*

Há poucas coisas tão ensurdecedoras quanto o silêncio. A frase do escritor uruguaio Mario Benedetti sintetiza o atual retrato político do continente latino-americano após os múltiplos golpes executados pelos mandatários do capital contra nossos povos. Tristes tempos marcados pela submissão política de nossos países e inúmeros retrocessos.

Na semana passada o mundo acompanhou em choque a notícia de que o governo Trump estava sistematicamente separando e aprisionando crianças que tentavam entrar ilegalmente com suas famílias nos Estados Unidos pela fronteira do México. Resultado da política de “Tolerância Zero” para a imigração implementada desde abril, a estimativa é de que aproximadamente 2000 crianças estejam atualmente nessa situação.

Mais aterrorizador ainda é o fato de que cerca de 1500 delas estejam perdidas, ou seja, o governo estadunidente não tem condições de rastrear onde estão seus pais para reunir essas famílias. O escândalo veio à tona a partir de denúncias feitas por militantes e ativistas dos Direitos Humanos e ganhou ampla repercussão na imprensa mundial.

O governo Trump alegou, cinicamente, que a prática de separação dos menores de suas famílias foi utilizada para dissuadir novos imigrantes ilegais a tentarem entrar no país, sem o menor pudor em explicitar o teor discriminatório e de violação dos Direitos Humanos de tal política.

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O esclarecimento foi feito por Jeff Sessions, procurador-geral dos Estados Unidos do governo Trump, cargo que se assemelha ao Ministro da Justiça no Brasil. Para pintar com tintas ainda mais inacreditáveis esse quadro, Sessions é conhecido por ter um histórico de participações em episódios racistas no seu país, inclusive um possível envolvimento com a Ku Klux Klan.

Trump viu-se forçado a recuar e revogou a prática da separação por meio de ordem executiva emitida após pressão de vários setores da sociedade estadunidense e seus ecos no contexto internacional.

A partir do absurdo dessa situação, era de se esperar que no campo político houvesse um movimento massivo de comoção e repúdio por parte dos governos a tal prática. No entanto, o que observamos foi um constrangedor “pisar em ovos” por parte da comunidade internacional.

Tendo em conta que essas crianças são de países da América Latina e Caribe, o único que se pronunciou de maneira a condenar e rechaçar tal situação foi a Guatemala. Amostra do cenário de subjugo e retrocesso de grande parte dos países da região frente aos mandos e desmandos dos representantes políticos do capital estadunidense.

As forças conservadoras, entreguistas e golpistas – simplificando o complexo em miúdos – ocupantes dos máximos espaços de poder político em nossos países recusam-se a posicionar-se de maneira condenatória em relação aos Estados Unidos.

Nossos organismos de integração regional que na década passada foram atuantes na defesa da autonomia da região e no fortalecimento das posições conjuntas em órgãos como a OEA e em espaços de concertação política interamericanos estão em mute.

Os compromissos e lealdades das forças políticas no poder com o capital financeiro estadunidense e com a entrega de nossos recursos estratégicos, direitos e futuro explica em grande medida essa imoral cautela diplomática .

Num movimento que se retroalimenta, a piora das condições de vida em nossos países nos últimos anos, o caos social, as crises políticas, a volta aos desmandos creditícios do FMI, o aumento da violência, as narcoguerras e suas vítimas, o desemprego, a perda de direitos e toda sorte de superexploração da força de trabalho decorrente do aumento dos tentáculos do capital imperialista na região, contribui para a falta de esperança e o aumento do número de imigrantes ilegais nos Estados Unidos. 

A imigração deve, assim, ser entendida como um grito contínuo de manutenção da sobrevivência frente a uma ordem hegemônica que invade, arde e maltrata a condição básica da existência-sobrevivência humana. É o caso dos imigrantes da América Central, dos imigrantes do México, dos imigrantes brasileiros. Mesmo com o endurecimento das políticas de controle migratório do governo Trump as pessoas consideram que essa alternativa é ainda melhor que a condição de vida em seus países de origem.

O Brasil possui aproximadamente 50 crianças nessa situação. O posicionamento do governo brasileiro veio através de uma nota protocolar do Ministério das Relações Exteriores emitida no dia 20 de junho. Há a demonstração de preocupação com o aumento de casos de menores retirados dos pais e expressa-se esperança de que a ordem executiva de Trump encerre tal prática de separação.

A chancelaria brasileira classificou como “prática cruel e em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos da criança” a situação dos menores nos EUA, mas o que parece ser um posicionamento assertivo em defesa dos seus cidadãos cujos direitos foram violados vai perdendo força ao longo do texto e a impressão é de que nossa diplomacia veste a vexatória carapuça de “culpa” por tal situação comprometendo-se no final da nota a dar orientações sobre os riscos da travessia. Não houve em nenhum momento repúdio ou crítica firme e direta às práticas violadoras dos Estados Unidos.

Para elevar o tom surreal da situação e ilustrar as nuances submissas de nossa política externa, na última terça-feira (26 de Junho) em visita ao Brasil o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, discursou em defesa do aumento da dureza da política migratória de seu país.

Isso não bastasse, Pence cobrou de Temer uma postura mais agressiva do Brasil em relação à Venezuela. Temer apresentou como proposta ao Vice-presidente estadunidense pagar as passagens para que as crianças brasileiras voltem ao país.

O constrangimento em expor a crueldade de uma política consciente por parte do governo Trump que classifica seres humanos em escalas de merecedores ou não da aplicação dos Direitos Humanos denota não apenas a submissão aos EUA da atual política externa brasileira mas também o esvaziamento em seu conteúdo da defesa dos temas humanitários. Como sabemos o não posicionamento nesses temas, mais do que em outros, custam vidas.

Em oposição a esse silêncio há crianças latinas que mal sabem falar e choram por serem separadas cruelmente de seus pais, mães negras que denunciam as vidas ceifadas de seus filhos pelas mãos de agentes do Estado, mulheres que exigem que não sejam mortas e tenham direito a seus corpos e tantos outros gritos que equalizam uma a uma todas as notas das violentas realidades em nossos países.

Vivemos tempos de crueldades cínicas, de governos latino-americanos que ignoram aqui ou lá o sofrimento de crianças, de políticas externas apequenadas em todos os sentidos. Na trincheira das palavras, ainda que o impacto seja simbólico, é necessário acusar o caráter desumano da condição imperialista-subimperialista sobre nossas vidas. Acusemos. E pelo grito coletivo sejamos capaz de cobrar e reconstruir outros mundos possíveis para nossas crianças.

Karen Honório é professora do curso de Relações Internacionais e Integração da UNILA, doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e membro do GR-RI.

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