Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Qual é o capital diplomático do Brasil?

O Brasil tem dimensões e riquezas naturais extraordinárias, mas seu maior capital diplomático é o dom do diálogo e da participação social

O prédio do Itamaraty, em Brasília
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Por Milton Rondó*

“…os pobres já não esperam de braços cruzados por soluções que nunca chegam; agora, os pobres querem ser protagonistas, para encontrarem eles mesmos uma solução para seus problemas.” Papa Francisco

O Brasil tem dimensões e riquezas naturais extraordinárias, mas não é esse seu maior capital diplomático. Partimos de um patamar altíssimo: em apenas 20 anos, o Barão do Rio Branco delimitou de forma pacífica todas as nossas fronteiras (com 10 países vizinhos), defendendo assim 1/9 do território nacional, então contestado.

Não há registro de façanha similar em âmbito internacional. Aproximadamente, equivale a defender, em sequência, 10 teses de doutorado, sendo que algumas das questões, como a de Palmas e a do Acre, envolveram conhecimento, capacidade negociadora e aplicação de conceitos jurídicos – como o uti possidetis – extraordinários. Nenhum ser humano poderia sobreviver a tamanho volume de trabalho intelectual. O Barão entregou a própria vida pelo País, sua soberania e suas riquezas, mas, principalmente, pelo seu povo, que tanto amava, e que lhe retribuiu com igual intensidade o afeto, ainda hoje presente nos principais logradouros urbanos, das maiores às menores cidades do País.

Graças ao Barão, rapidamente, superamos aqueles que, ainda na atualidade, constituem o principal motivo de conflito entre os Estados: os limites fronteiriços.

Não se podem medir os êxitos da política externa brasileira na última década sem levar em conta esse elevado ponto de partida. Com efeito, os logros obtidos pela diplomacia brasileira, governamental e não-governamental, tanto no âmbito multilateral quanto no bilateral, resultam dessa capacidade de resolução de conflitos por meios pacíficos. Esse é o principal capital diplomático brasileiro: o dom do diálogo e da participação social.

Ao verificarmos os principais sucessos das políticas públicas brasileiras, percebemos que estão relacionados à intersetorialidade e à participação da sociedade civil: a prevenção de DST/AIDS; o combate à pobreza; a superação da fome; o incentivo à agricultura familiar, entre outros.

Em todos os campos acima mencionados, o Brasil desenvolveu tecnologias sociais participativas que se tornaram referências de boas práticas em âmbito internacional.

De fato, ao buscarmos o fio condutor entre esses e outros campos em que o Brasil se tornou modelo de políticas públicas, vamos notar que o traço de união entre todas essas tecnologias sociais é a participação. Integram a Comissão Nacional de DST/AIDS, tanto a representante das trabalhadoras do sexo quanto o servidor do Ministério da Defesa. Para o combate à fome, o então-Presidente Lula reinstituiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), um dos primeiros atos de seu governo, em janeiro de 2003.

O Consea tornou-se um exemplo de tecnologia de participação social. Presidido por representantes da sociedade civil, o conselho reúne representantes de 20 ministérios (inclusive o Itamaraty) e 40 da sociedade civil organizada. Ao passar por processo de reforma, o Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas (CSA) adotou modelo similar ao Consea. Segundo o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, o CSA tornou-se, assim, a instância mais democrática do Sistema das Nações Unidas.

Graças ao Consea, o per capita da alimentação escolar teve aumentos contínuos, nos últimos 12 anos, após congelamento de 8 anos sob o governo de Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, 43 milhões de estudantes recebem alimentação nas escolas públicas e filantrópicas no Brasil.

Ademais, o Consea teve papel fundamental na sensibilização do Congresso Nacional, de sorte a aprovarem-se leis que convertessem políticas de governo em políticas de estado, garantindo-lhes, dessa forma, permanência e previsibilidade. Nesse sentido, ainda no que tange à alimentação escolar – em que o Brasil também se tornou modelo internacional, o Consea foi protagonista na aprovação da lei que aloca 30% das compras da alimentação escolar para a agricultura familiar (responsável por 70% da produção nacional de alimentos). Ao conquistar esse mercado seguro, os ingressos da agricultura familiar brasileira mais do que quintuplicaram, conformando círculo virtuoso em que os estudantes têm melhor condição nutricional, melhor capacidade cognitiva e suas famílias e comunidades, maior desenvolvimento socioeconômico e ambiental.

Por mobilização do Consea, o direito à alimentação foi inserido no artigo 6° da Constituição, tornando-se um direito humano, fundamental, universal. Automaticamente, à política externa tocou protegê-lo, promovê-lo e provê-lo em qualquer longitude ou latitude do globo, independentemente da nacionalidade da pessoa que se encontre em situação de insegurança alimentar. Em poucos países, Executivo e Legislativo tiveram a coragem de assumir um encargo tão coerente com a adesão nacional à Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A recente saída do Brasil do mapa da fome, elaborado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), representa mais uma consequência dessa série de políticas públicas exitosas, pautadas pela intersetorialidade, resultado conspícuo da vocação brasileira ao diálogo.

Essa conquista, porém, não está destinada à nossa autossatisfação. Por efeito da intersetorialidade, o Brasil empreendeu nos últimos 12 anos uma vigorosa ação de cooperação com outros países em desenvolvimento, a qual, embora não esteja isenta de contradições e lacunas, tem permitido compartilhar com outros países as experiências nacionais mais exitosas.

Em simetria com os programas nacionais, adotamos estratégia de dupla tração: de um lado, emergencial e, de outro, estrutural. Vale notar que esse formato foi posteriormente incorporado pela FAO, como um arquétipo para políticas públicas de combate à fome e promoção da segurança alimentar.

Concomitantemente, decidimos disputar também o terreno do simbólico: evoluímos da “ajuda humanitária” para a “assistência humanitária” (terminologia atualmente adotada pela ONU), até chegarmos à “cooperação humanitária”, pois somos o país de Paulo Freire. Sabemos que ninguém apenas ajuda e ninguém é ajudado unilateralmente; que somos seres “dialógicos”, ansiosos por participação, pois nosso inconsciente coletivo sabe que ninguém liberta ninguém, só nos libertamos em comunhão, como diria o professor. Por essa razão, Brasil, Índia e China decidimos não aceitar o termo “doador”, consideramo-nos “parceiros”.

Além disso, sendo o país sede da Conferência Rio 92 e da Rio +20, o Brasil, com mais razão, reivindica que toda cooperação, inclusive a humanitária, deva ser sustentável: social, econômica e ambientalmente. Por esse motivo, dedicamos 70% dos nossos recursos de cooperação humanitária para projetos estruturantes, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Estamos desenvolvendo cinco PAAs na África (“Purchase from Africans for Africa”), em Moçambique, Malaui, Etiópia, Níger e Senegal, em parceria com a FAO e o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA). O PAA África qualifica a produção da agricultura familiar africana e adquire essa produção para a alimentação escolar local. Dessa forma, os países podem incorporar a tecnologia social de compras locais, conhecendo-a não apenas teoricamente, mas também na prática, tirando dúvidas e adaptando-a aos contextos locais.

O PAA África já beneficiou mais de 128 mil estudantes e 5 mil e quinhentos agricultores e agricultoras nos países acima mencionados. O governo do Reino Unido aporta um quinto do valor do projeto, para apoiar o componente de conhecimento. No Senegal, o projeto também coopera com o governo local, para a produção sustentável de sementes e a implantação do programa de renda mínima, similar ao “Bolsa Família”. Dessa maneira, permite a superação do principal obstáculo na luta contra a fome: a disponibilidade de recursos financeiros para o acesso aos alimentos.

Em razão do êxito do programa na África, foram iniciados projetos similares nas Filipinas (“Purchase from Asians for Asia”) e na Colômbia, visando, inclusive, a auxiliar o reassentamento de camponeses deslocados e empobrecidos pelos conflitos internos, qualificando-lhes a produção, adquirindo os produtos para a alimentação escolar e transferindo a tecnologia social de compras locais.

Todos os três projetos de cooperação são executados em intensa colaboração com a sociedade civil local e brasileira, pois do amálgama de conhecimentos e saberes surge o desenvolvimento sustentável e participativo.

Vivemos o momento da nossa individuação como nação que “co-opera”. Na política externa, essa identificação de potencialidades e ações pode ser comparada ao instante mágico em que Michelangelo, em autêntico “inter-leggere”, visualizava dentro de cada bloco de pedra a Pietá, o Moisés, o David.

* Milton Rondó é diplomata, Coordenador-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome do Ministério das Relações Exteriores, e integra o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais em caráter pessoal

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