Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Autonomia diante dos EUA é comunismo ou bolivarianismo?

Uma carta escrita por um analista norte-americano em 1964 mostra que, há décadas, os estereótipos limitam as relações entre Washington e Brasília

Barack Obama e Dilma Rousseff em Brisbane, durante a foto oficial do encontro do G20, em 15 de novembro
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Por Fernando Santomauro*

“Marx puro! Mas não por causa da propaganda; Eu acho que essa visão [marxista] teria sido inventada aqui, mesmo se Marx nunca tivesse existido – ela se encaixa na mentalidade local e na sociedade mais precisamente.”

As palavras escritas à mão em um papel timbrado do “Argentina Hotel”, da Rua Cruz Lima, 30, no Flamengo/RJ, eram de uma carta* do diretor do Instituto para o Estudo do Comportamento Nacional da Princeton University, Dr. Bryant M. Wedge, contratado pela Agência de Informação Americana (USIA) em outubro de 1964, para melhor entender a mentalidade brasileira e as atitudes estudantis.

Contendo grifos e observações a lápis verde, provavelmente pelo receptor da carta, Sr. John Evans, diretor do departamento de pesquisa da USIA, registravam uma concordância efusiva com o diagnóstico “marxista por natureza” do brasileiro, que dizia “Muito bom!” e “disse isso muitas vezes!”.

Escrita há 50 anos e endereçada à USIA, foi encontrada por mim nos Arquivos Nacionais, um prédio com cara de shopping center no meio de Maryland, que guarda o que há de melhor na história documentada americana. A carta mostra a recorrente percepção dos analistas americanos, comum até hoje. As raras vezes em que o Brasil toma para si uma postura de autonomia política e nacionalismo, com apoio de grande parte da população e de movimentos populares importantes, são frequentemente confundidas pelos observadores e atores americanos como marxistas, comunistas, ou hoje em dia, “bolivarianas”.

A partir da eleição de Lula em 2002, se há uma área em que foi sentida uma nítida mudança de perspectiva e ação em relação a governos anteriores, esta foi a política externa, que retomou os ares da Política Externa Independente de Jânio e Jango e do Pragmatismo Responsável de Geisel.

A integração regional sul-americana definida como prioridade, o fortalecimento do Mercosul, a criação da Unasul, o enterro definitivo da Alca e das determinações impostas pelo FMI no País; as iniciativas de movimentos Sul-Sul, como os Brics, o Ibas, a relação com países africanos, asiáticos e árabes; o papel assumido no Haiti e a ocupação de lugares emblemáticos por brasileiros, como na OMC e a FAO; a participação ativa no G-20 e nas negociações comerciais internacionais: tudo isso colocou o Brasil em outro patamar.

O primeiro governo Dilma continuou aprofundando essa postura, assumindo papel importante em casos simbólicos: na região, como no apoio à suspensão temporária do Paraguai e à inclusão da Venezuela no Mercosul; com as propostas e compromissos voluntários assumidos na Rio+20 e na inovadora plataforma para internet; com o apoio à causa palestina e a condenação à violência utilizada por EUA e Europa como forma de resolução de conflitos internacionais.

Todas essas iniciativas não carregam, em si, um teor antiamericano, pelo menos nos seus princípios. São escolhas de um país que determina sua posição e as toma sem ter que pedir permissão. Mas definitivamente não são antiamericanas por si.

As relações cordiais com os EUA do governo Lula, e de aproximação de Dilma em seu início de governo, mostravam que era e foi possível trabalhar dentro dos temas comuns, que eram e são muitos. Apesar do lamentável episódio denunciado por Snowden e do posicionamento do governo americano em relação a isso, ainda é possível aprofundar as relações com os EUA, desde que se reconheça o Brasil como ele se apresenta.

Muitas ações podem ser buscadas, como na aproximação cultural, educacional e técnica para o desenvolvimento, na possibilidade de cooperação de cidades em temas urbanos, nas negociações comerciais em alguns setores que podem ser vantajosos para as duas economias, na permanente prospecção de pautas comuns para ação política conjunta, como direitos humanos e meio ambiente. Mas para isso é necessária a mudança de percepção americana e um esforço para entender o processo pelo qual passa o Brasil. E o mesmo em relação à compreensão brasileira dos EUA.

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A carta do Dr. Wedge de 1964 destacava a visão brasileira dos EUA: “Mas nós temos um senhor problema por aqui – que talvez tenha maiores consequências quando a modernização social-econômica recomeçar daqui 2 a 5 anos. É que quase todo mundo, independentemente da visão política e mesmo aqueles que têm contatos próximos e prolongados com os EUA, realmente acreditam no nosso “Capitalismo neo-imperialismo”. Entre outras coisas, isso leva à visão de que os EUA, assim como o Brasil, é realmente dominado pelo complexo tipo-militar-industrial-financeiro, de C.W. Mills. Essa, por sua vez, domina o Governo Brasileiro, assim como a de haver uma identidade de interesses entre “capitalistas internacionais” e a elite Brasileira. E esse interesse é predatório e opressor “do povo””.

A carta endereçada à USIA destacava que para melhorar sua imagem no Brasil, os EUA poderiam desenvolver outro discurso, buscando facetas que não se traduziam só na pregação do livre mercado: “A história americana não é contada, nem de longe, suficientemente. Talvez o governo não possa fazer isso, mas nós temos um bocado de avanços a contar além do laissez fairefree enterprise”. Está nas nossas leis e práticas, então não vejo como isso não poderia ser explorado – como princípio [para se contar a história americana]”.

A proposta do psicoanalista social de Princenton para uma nova postura americana poderia ir de encontro com o “futuro mítico” que era vivido pelos estudantes brasileiros dos anos 1960 e que havia sido soterrado pelo golpe militar, mas que mesmo com as forças conservadoras, continuava vivo: “Se o Brasil não fosse fascinante, eu me arrependeria por tentar pesquisar e descrever a mente social brasileira. Cheia de paradoxo, caos, anarquia, desorganização, mito, estereótipo, etc. Ad infinitum. Ainda enterrado em fortes estruturas e tradições (feudalismo econômico e político de meados do século XIX, com aspirações do século XXI), os estudantes, ao menos, têm a tendência de viver em um futuro mítico. À primeira vista, me parece que um justo ímpeto revolucionário modernizador foi submerso por causa da “revolução” ou golpe de 31 de Março, mas de maneira nenhuma está morto, mesmo se o poder e as estruturas de autoridade permanecerem com as forças conservadoras.”.

No novo governo Dilma, vivemos um desafio antigo na relação independente e altiva para com os Estados Unidos, que é resgatar o que há de comum entre os países e para isso romper com as análises estereotipadas.

Por fim, a carta do Dr. Wedge, que talvez não tenha sido levada em consideração pelo seu contratante, o governo americano (que depois do governo Johnson começou a abandonar a opinião pública internacional como fator relevante para a sua política externa), clamava pela tolerância entre os países, acima das ações: “Essa [carta] não diz nada sobre por que as coisas estão como estão, ou o quê temos que fazer, mas principalmente nos prepararmos para sermos tolerantes – o que pode ser muito difícil.”

O futuro mítico, vivido pelos estudantes de 64, finalmente chegou. Resta um esforço constante em aprofundar o que há de comum com os Estados Unidos. A agenda pode ser longa e produtiva, desde que os dois lados estejam abertos para mudanças de perspectivas em relação ao outro.

*Fernando Santomauro é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI, Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Guarulhos e Professor de História das Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina. Graduado em Ciências Sociais (USP) e Relações Internacionais (PUC-SP), mestre em História Social (PUC-SP), atualmente é doutorando em Relações Internacionais no Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), com o tema “A Agência de Informação Americana no Brasil de 1953-64”

*Fonte: NARA II, RG 306, Declassified NND 927503, Records of the United States Information Agency, Office of research Records of research Projects, Latin America, 1964-73, Stack Area 230, Row 046, compartment 030, Shelf 02, Entry A1-1018, BR 6402, Brazil, Political Semantics thru BR 6501, Brazil, Alliance for Progress, Box 3, HM FY1991, BR 6403, Brazil Students Attitudes (Bryant Wedge Study), Oct. 1964-65. Tradução minha.

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