Colunas e blogs

Não é apenas futebol: o legado político da Copa do Mundo Feminina

Vistas como frágeis e responsáveis pelo lar, as mulheres lutaram por 4 décadas para alcançar a regulamentação do futebol feminino

(Foto: Bianca Lodi)
Apoie Siga-nos no

Podemos atribuir milhões de palavras para a Copa do Mundo deste ano. Legado, vitória, luta, avanço, representatividade, e para algumas torcedoras e torcedores um ato político. Acompanhar os jogos das mulheres e da seleção deixou de ser uma ação normal para amantes do futebol feminino, para um ato político. Sendo uma busca coletiva por igualdade de gênero dentro e fora de campo.

Mulheres enfrentaram 42 anos de luta por espaço e visibilidade no futebol brasileiro. Os desafios começaram no dia 14 de abril de 1941, na Era Vargas, quando foi criada a lei 3.199, e no Art. 54. que dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Vistas como frágeis e responsáveis pelo lar e os filhos, as mulheres lutaram por quatro décadas para alcançar a regulamentação do futebol feminino, mas em 1983 venceram este obstáculo. A proibição, entretanto, tem reflexos negativos no esporte até hoje, como o pouco incentivo à prática e a falta de patrocínio.

Movimentos e torcedoras alegam que assistir aos jogos da Copa neste ano foi um ato político. “Engajamos outras mulheres a se posicionar em casa, no trabalho, no grupo de amigos para incentivar e motivar outras pessoas a pararem e prestarem atenção na tv naqueles dias. Ter esse posicionamento, comprar essa briga principalmente contra pessoas que viriam com o argumento de que Copa do Mundo de verdade é apenas a masculina, é um ato político. É defender o que acreditamos, é mexer nessa construção social que normatizou o futebol como um esporte acessível e capaz apenas para homens”, aponta Karina Gallon, criadora da marca-protesto Peita.

O Movimento Toda Poderosa Corinthiana (MTPC), fundado por torcedoras corintianas de todo o País, aponta que com certeza assistir os jogos da seleção feminina foi um ato político. “Principalmente em um momento onde as conquistas relativas às políticas públicas em benefício das mulheres sempre foram ameaçadas. Pois, para que uma mulher pudesse jogar futebol, foi necessário fazer política. De 1941 até 1983, todos os resultados positivos que tivemos foi graças à força de vontade e a competência individual de cada uma dessas jogadoras que continuaram a jogar mesmo que proibidas, pois, mesmo após 83, a profissionalização e o investimento no futebol feminino ainda caminham a passos curtos,” conta.

(Foto:Divulgação)

O legado político por trás dessa Copa do Mundo é justamente por todo processo histórico de segregação, política de controle legal e biológico, e estigmatização do corpo feminino enquanto frágil, incapaz e delicado que essas mulheres lutaram e enfrentaram. Seus direitos sempre foram tirados de cena por leis. A luta foi gigante para alcançar seu espaço na sociedade e no esporte. E por esse motivo a mobilização para os jogos deste ano, principalmente, também teve seu cunho político e representativo.

“A mobilização para os jogos da Seleção Feminina sempre foi diferente, esquecida. As pessoas só lembravam que o Brasil tinha um time de futebol com mulheres no período das Olimpíadas. Assistir o Mundial foi uma oportunidade de mostrar que existem várias categorias e campeonatos precisando de apoio, valorização, investimento e respeito”, relata o Movimento Toda Poderosa Corinthiana.

A situação tem evoluído. As mulheres têm que praticar esportes, precisam de poder e visibilidade. Então, agora, é sobre ocupar o espaço público também, reivindicar o lugar da mulher, incentivar as atividades, mexer o corpo. A conversa a respeito das causas e consequências dessa falta de visibilidade tende a ser circular: não existe interesse porque não está na mídia; não está na mídia por falta de investimento; falta investimento porque não existe interesse. Ou quaisquer outras permutações destes fatores. Mas o exercício de des/articulação de cada um desses pontos é vão, pois a raiz política deste problema precede futebol, mídia e investimentos. A conversa precisa começar onde o problema começa: sexismo.

Para as meninas do Peita, que tem um movimento social feminista e um propósito de marca, vida e militância, o futebol é claramente um recorte da nossa sociedade, desse sistema patriarcal que nos quer dispersas, rivais e propriedade privada de um padrão embutido de família. “Pela primeira vez qualquer televisão em qualquer canto do Brasil teve a chance de ver um jogo de futebol feminino em canal aberto, e isso gerou uma visibilidade imensa. Chegamos assim em casas, comunidades, aldeias, interiores e espaços que a militância levaria muito tempo pra alcançar,” conta Karina.

O futebol é uma paixão nacional e não pode continuar sendo direcionado e limitado por homens. Que o legado dessa Copa, as ações e conquistas seja o fim do machismo estrutural que proibiu mulheres de jogar futebol e tratou o esporte como uma questão de gênero, quando na verdade é sobre vontade e desejo. Que abriu portas e sonhos para meninas que apanhavam nas ruas, quadras das comunidades por ousar pedir para jogar com os meninos.

O sistema não irá calar mais

Aos poucos o quadro vem se revertendo, e diante de tanto preconceito e machismo, as mulheres começaram a ganhar espaço fora e dentro de campo. Os movimentos sociais e feministas abraçaram a causa e são representatividade para essas mulheres. Karina do Peita deixa a voz para elas: “Não vamos mais nos calar. Quando percebemos um pouco melhor como a roda gira, como é o sistema em que vivemos, não tem como nos calar mais. Esse é o momento do movimento das mulheres, de ocuparmos os espaços que nos foram negados e nos reapropriarmos dos que já foram nossos. É o momentos das mulheres se entenderem como aliadas, que não estão sozinhas e que juntas conseguimos romper as barreirass. Somente juntas. Esse é o verdadeiro empoderamento, quando é uma força coletiva. O futebol é só um recorte. Conseguimos trazer o tema pra discussão, conseguimos desafiar o dogma de ser um esporte para homens e agora que chamamos a atenção eles não vão mais nos silenciar.

Já para o Movimento Toda Poderosa Corinthiana, a luta ainda continua, mas uma parte já foi vencida “Essa Copa foi uma batalha vencida dentro de uma grande guerra e um importante passo para a representatividade, mas ainda é preciso muito mais. Nós do MTPC sempre fazemos campanha chamando as pessoas para comparecer, e quando chegamos lá, o Estádio está sempre vazio. Os jogos acontecem em horários que não ajudam o deslocamento e a transmissão por parte da imprensa é quase nula.  Para realizarem esses sonhos muitas dessas mulheres precisam ter mais que um emprego, além de terem que lidar com a indiferença, com o preconceito, com as comparações aos homens. Mas não podemos esquecer que as mulheres são sub-representadas dentro do próprio esporte que praticam e apoiar o futebol feminino é dar voz e lugar a todas as profissionais que dele participam. A gente sempre pensou positivo e dessa vez não será diferente. Vamos continuar. Para nós mulheres, cotidiano é luta.”

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo