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João Saldanha, o técnico que peitou militares e denunciou a ditadura

Mais do que nunca, é preciso lembrar que o futebol não precisa ser só ‘pão e circo’

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Era fevereiro de 1969 quando o doutor Antônio de Passo, então diretor de futebol da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), bateu à porta de João Saldanha e lhe fez o convite para treinar a seleção brasileira. O Brasil estava sob o controle dos militares, mas o cargo de comandante do escrete foi oferecido a um comunista.

Não foi o primeiro convite. Mas a resposta, dessa vez, foi imediata: “Topo!”. Em mente, Saldanha tinha os nomes dos jogadores que seriam convocados e a certeza de que o cargo viria acompanhado de muita dor de cabeça. “Topei porque sabia que nosso país precisa de alegria. E o futebol é a alegria de nosso povo. Por isso topei a parada. Sabia que ia lidar com a inveja, a calúnia, a intriga e que ia lutar contra tudo”, contou o treinador em texto assinado por ele na revista Placar em março de 1970.

João Saldanha nasceu em Alegrete no ano de 1917, no Rio Grande do Sul, e desde o berço teve contato com a militância de esquerda, através de sua família. Ao se mudar para o Rio de Janeiro, na década de 30, aproximou-se do futebol e filiou-se ao Partido Comunista. Foi jogador, diretor de futebol e treinador do Botafogo antes de ingressar na imprensa esportiva. Como comentarista, Saldanha se destacou e ganhou popularidade entre os torcedores.

O convite para treinar a seleção, durante o governo Costa e Silva, teve como pano de fundo essa popularidade. O objetivo era aproximar os brasileiros da seleção nacional, o que de fato ocorreu. No dia em que foi chamado para treinar o escrete, um dos assessores de Costa e Silva botou a mão nos ombros de Saldanha e disse: “O general conhece tudo de você, mas ele quer isso mesmo, ele quer uma aproximação popular.”

Ao aceitar o cargo, Saldanha também sabia o que queria: defender, na prática, o que já vinha defendendo nas páginas dos jornais – que significava, para ele, defender o jogador na luta contra o cartola. O primeiro ato como treinador foi convocar os jogadores, que ficaram conhecidos como “as feras de Saldanha” – entre eles, Carlos Alberto Torres, Gérson, Jairzinho, Tostão e Pelé, que foram titulares no tricampeonato mundial. Com Saldanha, o Brasil fez uma campanha inquestionável e venceu as Eliminatórias para a Copa do Mundo de forma invicta. Naquele momento, a popularidade do técnico era ainda maior do que quando assumiu o cargo.

O que diminuiu foi a paciência do treinador com a influência dos militares na CBD. Após Médici assumir o poder, em outubro de 1969, o AI-5 foi instaurado no Brasil e o país vivia o que ficou conhecido como “anos de chumbo”. Saldanha não se calou. “João Sem Medo”, o treinador usou o cargo para questionar as torturas e mortes que ocorriam no Brasil durante a ditadura.

Durante o sorteio para os grupos da Copa do Mundo, em janeiro de 1970, o técnico distribuiu um dossiê em que denunciava as atrocidades cometidas pelos militares – incluindo os nomes de mais de 3.000 presos políticos. A manutenção de Saldanha no cargo ficou insustentável.

Envolvido em diversas polêmicas, João Saldanha não tinha papas na língua. Dos episódios que ganharam destaque na imprensa, o que ficou eternizado foi a resposta do treinador à insistência de Médici pela convocação do atacante Dadá Maravilha. Saldanha disse: “Nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala o time”. Dita a frase, após duas semanas, o treinador foi demitido. Faltavam menos de três meses para a estreia do Brasil na Copa do Mundo.

No dia seguinte, Saldanha escreveu em sua crônica para o jornal O Globo: “Foi a coisa mais cínica que presenciei na minha vida. Quanta fraqueza, quanta covardia”. Não foi só pela declaração afrontosa, não foi só pelo posicionamento político de Saldanha. Foi, sobretudo, pela coragem e pelo espaço que ele tinha para falar o que bem entendesse. E pelo espaço ainda maior que teria se voltasse do México com o título de campeão do mundo.

É preciso lembrar histórias como essas, porque ainda há quem ache que futebol e política não se misturam. Como se os campos de futebol ficassem em uma esfera mítica, alheia ao que acontece ao redor.

Na argentina, o dia 24 de março é usado para lembrar as vítimas da ditadura local. A data marcou o início do poder militar no país, em 1976 e, hoje, é conhecido como “Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça”. No dia 24, os principais times da Argentina fizeram postagens sobre a data, reforçando uma mensagem: “Ditadura nunca mais”.

No dia em que se completou 55 anos do golpe militar no Brasil, apenas três clubes da série A se manifestaram: Bahia, Corinthians e Vasco. Mais do que nunca, é preciso lembrar que o futebol não precisa ser só “pão e circo”.

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