Fora da Faria
Uma coluna de negócios focada na economia real.
Fora da Faria
O marketing eleitoral na campanha de Necrópoles
O Comitê De Campanha de Necrópoles, lendo as pesquisas, chega à conclusão de que um tiro pode valer um voto. Uma morte vale dez. Um massacre, milhares
Necrópoles é um país imaginário (nem tanto assim) que foi gestado de maneira subterrânea ao longo da história. Sua construção fugiu da regra de conquista de territórios e passou pela conquista de mentes para, depois, conquistar territórios.
Necrópoles teve um auge com uma estratégia de desumanização. Funciona da seguinte maneira. Existem pessoas que merecem viver e outras que não. Na verdade, para não merecerem viver, é preciso combater a ideia de que são pessoas. Cria-se uma qualificação, um símbolo, convence-se a opinião pública e depois se extermina. Define-se que, não sendo gente, os desumanizados são pragas e, como tais, a morte é o melhor caminho.
A história é repleta de fases em que a Necrópoles luta para se firmar como um território físico. Em todas elas a barbárie é um espetáculo. No século passado, foi impressa em capas de jornais e revistas. Necrópoles buscava e tinha aprovação de nichos e, depois, da maioria da população em determinadas regiões. Se formos descrever os horrores dos acontecimentos da Segunda Guerra até hoje – menos de 100 anos, teremos a presença dos fundadores de Necrópoles agindo para formar uma corrente de opinião favorável às atrocidades se reorganizando em todo mundo. A ideia da Necrópoles está viva.
Há, porém, uma mudança a ser observada. A potência das ferramentas de mercado invadiu Necrópoles. Hoje não existe uma empresa agindo sem estratégias de marketing. Nem mesmo uma campanha eleitoral. As pesquisas de mercado e opinião, irmãs da mesma natureza, se tornaram uma ferramenta para justificar a frase que era dita sem parar pela minha avó: quem não segue a maioria faz burrada todo dia.
Pesquisas divulgadas após a ação policial do Rio de Janeiro apontam que a maioria da população do país e do Rio de Janeiro apoia e concorda com a operação policial realizada. Dois números muito importantes. O Datafolha apontou que para 40% dos entrevistados, bandido bom é bandido morto. O número mais impactante, porém compreensível, foi da Atlas Intel de que mais de 87% da população das favelas cariocas apoia a operação. O recado é evidente: quem vive entre forças policiais e o controle de facções no meio do tiroteio quer apenas que os tiros parem. Não têm tempo para um debate ideológico entre um zunido de bala e um trovão de bomba. É preciso compreender o que elas estão dizendo e o risco de cederem a qualquer apelo que possibilite sair de casa para comprar pão sem ter que pedir autorização ou ser ameaçado por agentes fardados.
O temor é o efeito dessas pesquisas eleitorais nos gestores de Necrópoles. Comentaristas falam, acertadamente, que o tema segurança pública entrou na agenda da campanha eleitoral. As pesquisas comprovam isso e estão sendo devoradas por estruturas partidárias ávidas por respostas imediatas e oportunistas. Nesse pântano emerge o monstro do marketing eleitoral. Dar resposta ao tema pode significar uma linha direta entre a ação e o voto. Marketing de experiência, dirão.
O Comitê De Campanha de Necrópoles, lendo as pesquisas, chega à conclusão de que um tiro pode valer um voto. Uma morte vale dez. Um massacre, milhares. As pesquisas indicam que a maioria apoia. No vale tudo por um voto desumaniza-se ainda mais. A política de segurança pública passa a ser a política de justiçamento público, com fotos de cadáveres empilhados.
Necrópoles não é um país que quer discutir a função do Estado, que este não tem direito de justiçar e que dar a ele a mesma função de facções criminosas transforma o próprio estado em uma facção fora de controle. A culpa será um detalhe. Necrópoles não quer atacar a origem do problema. Não quer controlar a entrada de armas, prender os líderes reais, combater a infiltração das facções no Estado e nas forças policiais, o contrabando de munição, a venda de equipamentos bélicos para qualquer pessoa ou punir todo agente financeiro que faça o dinheiro navegar por suas contas. Necrópoles quer mais armas porque vive do confronto e transforma em espetáculo as cenas de guerra que valem votos.
Marqueteiros de Necrópoles podem ter grandes ideias. Podem determinar que a espetacularização é o melhor caminho e julgamentos devem ser substituídos por justiçamento. Filmes de ação atraem o público. Mais ações, mais chance de vencer uma eleição. Chegamos ao período das urnas mortuárias. Quem mata mais tem mais votos. Chegará um momento em que não existirão eleitores. Tanto melhor. Necrópoles considera a democracia um percalço no caminho de um poder absoluto em que a força do policial do Estado seja a essência.
Em Necrópoles é preciso de políticos dispostos a perder. Políticos que não vão ganhar a simpatia da maioria, mas que vão defender que é preciso combater o crime organizado sem que o estado se torne criminoso. Gente que vai dizer que o correto é prender e julgar. Que o fuzil não é justiça. Esses políticos terão poucos votos, contrariando as pesquisas de opinião e os conselhos do marketing eleitoral de Necrópoles. Talvez preguem para os mortos em um momento em que a frase “os mortos que enterrem seus mortos”, de Marx, ganha um novo e terrível significado.
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