Fora da Faria

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O efeito colateral dos carros chineses

Pode ser uma chance para as empresas brasileiras perceberem as oportunidades ou uma ameaça para quem não entender a dinâmica do mercado

O efeito colateral dos carros chineses
O efeito colateral dos carros chineses
Carro da BYD, a gigante chinesa de veículos elétricos. Foto: Wikimedia Commons
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Na virada do século, atividades profissionais me levaram a uma dezena de grandes eventos globais no segmento de bebidas e alimentos. Durante anos, frequentei a SIAL e a ANUGA, grandes eventos desses segmentos, sempre acompanhando tendências e avaliando novos equipamentos. Muitas vezes, empresas chinesas eram abordadas muito mais pela curiosidade do que pela geração de negócios. O Ocidente tinha enormes desconfianças dessas empresas. O lado ocidental pensava na China, de maneira hegemônica, como um país produtor de quinquilharias sem qualidade.

Empresas brasileiras olhavam de relance para equipamentos chineses. O preço era competitivo, mas a percepção era de que o risco seria enorme. Sem causar alarde, grandes grupos europeus e americanos migraram sua produção para o país asiático, firmando acordos de parcerias e produção de seus produtos na China. Celulares, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos, calçados esportivos, moda e muitos outros itens saíam de fábricas chinesas. A garantia eram as marcas das empresas, mas a pedra de toque da percepção da qualidade dos produtos chineses foi a indústria automobilística, em especial os carros elétricos.

No Brasil, depois da abertura do mercado para veículos importados, houve muitas experiências com marcas de diversas origens. Existem até hoje saudosistas dos utilitários Lada, marca russa que era uma espécie de Gurgel com sotaque. Os chineses fizeram as primeiras incursões no Brasil na década de 90 com as marcas de ônibus e caminhões Yutong e Dongfeng. Em 2006, chegaram Hafei e Changhe, que tiveram montagem no Brasil. No mesmo período, veio a Chana, com minivans. As marcas enfrentaram enorme desconfiança e, de fato, não traziam nenhuma inovação para o mercado.

O que mudou desde então? A onda atual de carros chineses chega com uma tecnologia disruptiva para o mercado brasileiro: carros elétricos e híbridos. As montadoras instaladas no Brasil não têm foco no segmento e não promovem grandes investimentos em produção, comercialização e marketing. Já as marcas chinesas entram como embaixadoras desta categoria. Os esforços são direcionados à construção e à liderança nesse segmento, com destaque para a BYD.

Liderar um segmento é uma das mais eficientes estratégias de marketing para construção de uma marca. Carros elétricos possuem uma tecnologia diferente, o que causa uma percepção de evolução, tornando-os sucedâneos. Os carros chineses, no Brasil, se apropriaram dessa percepção. Todos eles chegam com muita tecnologia embarcada e apelo visual. O design dos veículos, com raras exceções, caiu no gosto dos brasileiros e se diferencia dos que existiam até agora nas ruas. Quanto mais carros elétricos chineses vemos, mais confiamos na eficiência. Quanto mais somos passageiros em táxis ou veículos de aplicativos, mais nos divertimos com as telas enormes e a ausência de barulho do motor. O brasileiro passa a experimentar as marcas e se surpreende com a qualidade.

O raciocínio a seguir é bem simples. Quem faz carros arrojados, com tecnologia, bonitos e eficientes pode fazer muito mais. Esse é o efeito colateral da indústria automobilística chinesa. Os preços dos veículos são competitivos, mas foi-se o tempo em que os produtos chineses eram os mais baratos. Isso também faz com que os carros que circulam custem mais do que os carros populares — e SUVs de 200 mil reais não são propriamente uma bagatela, uma vez que ter esse valor para comprar um carro é para poucos.

A segunda onda que veremos nos produtos chineses será a de eletrodomésticos, com equipamentos para cozinha, televisores e computadores. Já comparamos produtos chineses com marcas brasileiras, americanas ou europeias. O desafio para as marcas chinesas, como aconteceu com os carros, será entrar com tecnologias diferenciadas e montar redes de assistência técnica. Isso acontecerá com associações ou compra de empresas no Brasil. A consolidação virá mais dia ou menos dia.

Empresas chinesas estão disputando — e ganhando — grandes concorrências para obras de infraestrutura, equipamentos industriais estão em instalação em empresas, serviços desembarcam no Brasil em uma nova onda de oportunidades. Empresas brasileiras precisam estar atentas para essas oportunidades e desenvolver estratégias para esses novos concorrentes.

Construção de mercado é muito mais do que uma disputa econômica. É uma luta de percepção. O que está em curso é a maior experimentação positiva e consciente de produtos com alta tecnologia e valor de produtos chineses. Essa experimentação vai superar a percepção anterior. O efeito colateral será que teremos ainda mais marcas chinesas atuando no Brasil. Pode ser uma chance para as empresas brasileiras perceberem as oportunidades de capitalização, investimentos e associação, ou uma ameaça para quem não entender a dinâmica do mercado.

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