Fashion Revolution

Os impactos da covid-19 nas relações de trabalho: quão responsável é a indústria da moda?

Alguns sinais do que virá adiante já aparecem no horizonte

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O coronavírus (covid-19) surgiu no final de 2019 na China para, em seguida, disseminar-se de forma pandêmica pelo mundo. Assim, não há local que não seja impactado pela nova enfermidade. Slavoj Zizek, filósofo esloveno, refletiu sobre a questão e escreveu uma das obras mais representativas do período em que vivemos. O livro “Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo” propõe uma releitura do capitalismo contemporâneo a partir das inflexões causadas pelo coronavírus. A ideia central da obra percorre os impactos causados pelo flagelo sanitário da doença na trajetória liberal-capitalista da história recente, concluindo que a verdadeira batalha da humanidade ainda está por vir e se dará em torno de qual forma social irá substituir a presente “nova ordem global”, mal finalizada e já obsoleta para lidar com crises sanitárias, sociais, econômicas e humanitárias, como a que se apresenta agora. 

O Fashion Revolution, que possui atuação ao redor do mundo todo, terá uma excelente oportunidade de testemunhar, mais uma vez, os fatos que permeiam o mundo do trabalho contemporâneo na indústria da moda. Assim, a questão central proposta pelo movimento, “quem fez as minhas roupas?”, torna-se não apenas uma frase extremamente representativa da motivação central da revolução proposta, mas também remete a outras tantas perguntas subjacentes à original. Como e onde foram feitas as minhas roupas? Qual a forma de contratação das pessoas que fizeram as minhas roupas? Quantos intermediários existiram até que a minha roupa tenha chegado até mim? Quais foram as condições de trabalho – jornada, respeito aos intervalos, remuneração, segurança e saúde, garantia de gozo de férias, compatibilização do trabalho com a vida familiar, concessão de benefícios típicos da seguridade social etc. – experimentadas pelas pessoas que fizeram as minhas roupas? Enfim, há uma série de perguntas que se reproduzem e se repetem a partir da inicial, todas elas centrais na revolução de sustentabilidade proposta pelo Fashion Revolution. 

Segundo a ABIT, o Brasil representa a maior cadeia têxtil completa do hemisfério ocidental, produzindo desde as fibras, a partir da plantação do algodão, até os desfiles de moda, passando por fiações, tecelagens, beneficiadoras, confecções e varejo. A indústria da moda gerava, antes da crise causada pela covid-19, em nosso mercado de trabalho, cerca de 1,5 milhão de empregos diretos e 8 milhões de indiretos, dos quais 75% eram formados de mão de obra feminina. Tratava-se, portanto, do segundo maior empregador da indústria de transformação e do segundo maior gerador do primeiro emprego no Brasil. 

Ainda é cedo para afirmar que os padrões de consumo e produção serão afetados de forma permanente pela pandemia, com dramática projeção para o futuro, apesar do sério impacto experimentado nos dias correntes no efêmero e volátil mundo da produção do vestuário. A indústria do moda é deveras influenciada pela expressão cultural dos povos e é, em especial, representativa da forma de se manifestar de cada indivíduo. Dessa forma, tende a adaptar-se rapidamente às pressões dos padrões de consumo. No entanto, alguns sinais do que virá adiante já aparecem no horizonte. A uberização da moda, por exemplo, é uma realidade cada vez mais presente e merece ser abordada com cuidado nessa indústria. 

Da mesma forma, a queda abrupta do consumo, do comércio e, consequentemente, da produção, causada pela pandemia da covid-19, apresenta, na indústria da moda, algumas características peculiares que ajudam a fragilizar ainda mais os trabalhadores do setor. Nesse contexto, é importante registrar que parcela substancial dos trabalhadores da cadeia de fornecimento da moda é constituída por pessoas com baixa qualificação. São os trabalhadores que exercem atividades que demandam uso intensivo de mão de obra, logo, naturalmente, sujeitos a ocuparem postos de trabalho que não requerem muito estudo, os quais oferecem, por sua vez, baixa remuneração e precárias condições de trabalho. São postos de trabalho que vão do plantio do algodão, em uma ponta da cadeia de fornecimento, ao transporte e distribuição de roupa pronta, na outra, passando pela costura, corte, enfestamento, acabamento etc. 

É importante também considerar que a maior parte desses trabalhadores exerce suas atividades em pequenas unidades econômicas, compostas por micro e pequenas empresas, muitas vezes no âmbito da economia informal. São essas as empresas que sofrerão os impactos mais severos e imediatos da queda abrupta da produção e esses, os primeiros trabalhadores a perder seus postos de trabalho e os últimos a recuperá-los, caso os níveis produtivos retornem um dia aos valores anteriores à pandemia. 

Nessa complexa conjuntura, como amplamente noticiado, algumas empresas varejistas, mais responsáveis sob o ponto de vista social, mantiveram as encomendas que haviam sido realizadas a seus fornecedores de roupas antes da pandemia, ainda que o cenário das vendas esteja bastante incerto nos dias correntes. Outras empresas, bastante menos responsáveis, alegaram motivo de força maior e cortaram de maneira abrupta os contratos de fornecimento, pouco importando se a produção do lote de roupas estivesse adiantada ou mesmo terminada. Dessa forma, o enorme prejuízo recaiu sobre seus fornecedores diretos, que, em efeito cascata, podem tê-lo repassado para as camadas inferiores dessa cadeia representadas pelos trabalhadores. Lamentavelmente, é essa a realidade observada em grande parte dos casos, em um cenário ainda bastante confuso na indústria da moda, tanto no exterior quanto aqui no Brasil. Nesse sentido, algumas ferramentas internacionais, como o “covid-19 Tracker”, da ONG Worker´s Rights Consortium, e o Moda Livre, da Repórter Brasil, podem ajudar a fornecer maior transparência quanto às reais condutas empresariais em tempos de coronavírus.  

Outras iniciativas de natureza empresarial visam a estimular a produção de emergência no cenário pandêmico, que envolve a manufatura de máscaras, aventais, e insumos para o uso da saúde pública. Essa estratégia pode ser uma saída a curto prazo, mas tende a não representar uma atividade sustentável no médio e longo prazos, por se tratarem de atividades de subsistência. Por serem pouco transparentes, essas iniciativas também carecem de maiores informações quanto às condições de trabalho empregadas na manufatura, além da inconsistente sustentabilidade no médio e longo prazos. Nesse sentido, essas unidades econômicas poderiam se beneficiar da ferramenta “autodiagnóstico trabalhista”, desenvolvida, recentemente, pelo Sistema Federal de Inspeção do Trabalho. A ideia é facilitar, de maneira gratuita, o acesso a uma solução oficial de avaliação do estado geral de cumprimento da legislação trabalhista por parte do empreendedor, de forma a lhe fornecer, ao fim do diagnóstico, um parecer e orientações sobre como cumprir com a legislação de proteção ao trabalho. 

Por fim, é necessário avançarmos na ampliação dos padrões de responsabilidade praticados nas cadeias de fornecimento da indústria da moda, como a única solução viável para garantir a sustentabilidade de todos os elos que dela fazem parte. Diante do cenário atual, não é mais adequado, desejável e sustentável  que as  unidades econômicas que fazem parte dessa cadeia estejam cada vez mais sujeitas a um aumento da concentração econômica, gerando algumas das maiores fortunas do mundo, de um lado, e uma multidão de trabalhadores empobrecidos, do outro. Mais responsabilidade pelas condições de trabalho entre os diversos elos da cadeia de fornecimento da moda implica, também, melhor distribuição de renda ao longo da mesma. Alguém conhece melhor maneira de se estimular a sustentabilidade, a moda circular e o consumo consciente? 

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