Fashion Revolution

ModAtivismo como prática insurgente para pensar o Dia Internacional da Mulher Negra

A luta antirracista é muito mais complexa do que se pode dar conta num texto ou numa coleção e requer amplo debate

Coleção Asè, 2016, Salvador - BA. Foto: : Helen Salomão
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Por Carol Barreto

Venho de uma terra onde aprendi a luta feminista e antirracista na prática, desde a intelectualidade produzida nos livros, como também nos modos de produção de conhecimento presentes nas rodas de samba, na capoeira, nos terreiros de candomblé, nas feiras livres, nos almoços de família… É daí que nasce a minha atuação nas áreas da educação, das artes e do design de moda autoral, entendendo o viés transformador desses campos na mesma medida.

Como mulher negra do recôncavo da Bahia, tenho materializado por meio das minhas coleções, nos desfiles e nas galerias de arte, os saberes/fazeres que essa terra me ensinou, expressando os modos revolucionários de existência de uma população negra ancestral, que me mostrou na prática os parâmetros de resistência que hoje conceituo como ModAtivismo. Criei esse termo pela impossibilidade de dissociar, na minha trajetória, a criação em moda e os ativismos com os quais desde adolescente estava envolvida.

ModAtivismo nasce a partir do reconhecimento e da problematização do meu lugar de existência e por meio da constatação de que para nós mulheres negras, a aparência, a corporalidade, os aspectos intangíveis da moda e sua materialidade vestimentar ou estética, são planos de expressão discursiva e também esfera de materialização dos marcadores sociais das diferenças, nos posicionando numa escala subalternizada dentre as hierarquias sociais.

No dia 25 de julho comemoramos o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha; e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no Brasil. A rainha Tereza de Benguela foi uma líder quilombola, que viveu no século XVIII e por duas décadas resistiu à escravização protegendo a comunidade negra e indígena, até o ano de 1770 no Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso. Assim como essa, são milhares de histórias e feitos memoráveis de mulheres negras, que foram ocultadas por um explícito acordo racista no Brasil.

 

Desde a história geral e noutras diversas áreas de produção de conhecimento, temos no campo da moda, a enorme responsabilidade de debater o entendimento sobre o papel da aparência na definição do curso de existência de uma pessoa e, o modo como está imbricada nos processos de racialização. Sabemos que as nossas marcas de identidade são expressadas por meio das corporalidades, mas traduzidas a partir de elementos discursivos que direcionam a percepção da nossa imagem, nos conectando a uma narrativa de origem. Isto nos auxilia a compreender o conceito de Raça como uma produção social e analisar como a moda, suas imagens, textos e outros modos de produção de sentido e significado, contribuem para a manutenção da hierarquização racial, resultante dos violentos processos colonizatórios que ocorreram no nosso país.

No ano de 1872, a Bahia tinha a terceira maior população servil do país, trabalhando predominantemente nas usinas de cana de açúcar, dados referentes a região do Recôncavo da Bahia, segundo Silvio Cunha (2004),
apresentam implicâncias ainda maiores no que se refere a trajetória de vida da população negra, pois, mesmo com a proclamação abolicionista, ainda era presente o trabalho escravizado. O canto de uma inicial liberdade começou com a luta organizada para a emancipação da comunidade e a conquista de terras por pessoas negras, o que não garantiu a mobilidade social. Nessas pequenas cidades, as ruas viraram a casa de muitas pessoas para conseguir o sustento material e foram as mulheres negras, as primeiras mulheres empreendedoras do país, mas, infelizmente na atualidade, são maioria dentre aquelas que estão abaixo da linha da pobreza.

Na Bahia comemoramos o êxito de centenas de anos de luta, por meio da beleza das festividades tradicionais, sendo esta a terra inicial do processo colonizatório no Brasil, suas diversas marcas ainda estão presentes até os dias atuais, mas muitas delas foram transformadas em traços de identidade da população negra, por meio do vestuário e de técnicas muito antigas de beneficiamento e manipulação têxtil com fios naturais de algodão.

O Brasil no século XIX, carregava a sua economia agrícola de algodão na mão- de-obra de pessoas escravizadas, e sua produção era destinada ao mercado externo. Com a quebra do ciclo do ouro e o etnocídio indígena, tudo indicava mais uma fase de exploração do chão do Brasil e assim o algodão virou a atividade econômica principal do país. Plantado em larga escala na época da colônia, era predominante a produção na região Nordeste, sobretudo nos estados do Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia.

Conhecido como ouro branco, o algodão sempre teve muito valor, mesmo tendo gotas de sangue na sua irrigação. Com a sua produção feita por muito tempo a partir da exploração de muitas vidas sequestradas de África, tornou-se também a tessitura para as vestes ritualísticas, ricamente elaboradas, a partir dos tecidos e linhas de algodão, quando a população negra, reunida nos Candomblés, podia celebrar seu pertencimento cultural e sua espiritualidade; tendo nos alvos tons do algodão sua mais cara linguagem de proteção, sob as guias de Oxalá.

Foi com Asè – energia vital, força ancestral – que conseguimos permanecer vivas e transcender – por meio de sofisticados modos de organização – cada gota de suor, lágrima e sangue derramado por nossos (as) ancestrais durante 400 anos, e nestes últimos 132 anos ainda continuamos lutando sozinhas. É nesse contexto que surge a criação da Coleção Asè, que nasceu para celebrar a emoção da viagem de retorno à minha terra ancestral, atendendo ao convite para representar o Brasil no Angola International Fashion Show em Luanda, no ano de 2016. A Coleção Asè nasce em homenagem às Iyalorixás, Mães de Santo, Mestras de Jurema, de Umbanda e das outras riquíssimas religiões de matriz africana, onde é marcante a presença dessas fortes mulheres, que foram as grandes responsáveis pelo cuidado da vida, da saúde, da espiritualidade e pela reconstrução do senso de família de tantas pessoas desagregadas de sua origem.

A luta antirracista é muito mais complexa do que se pode dar conta num texto ou numa coleção e requer amplo debate, mas essencialmente, envolve ações práticas que elaborem a divisão de oportunidades para todas as pessoas e produzam a necessária radicalização cognitiva, contando com a contribuição da moda e dos demais setores da sociedade civil, para constituir imagens de autoridade e de intelectualidade concernentes à factível produção intelectual de mulheres negras, para que, diante da complexidade de um problema de dimensão estrutural e de aspecto estruturante como o racismo, possamos construir um avanço em direção a desconstrução dessa dívida histórica.

Carol Barreto é Artista Visual, Designer de Moda Autoral, Professora Adjunta do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da UFBA. Trabalha com a relação entre Moda e Ativismo Feminista e Antirracista, com trabalhos apresentados em passarelas do Senegal, França e Angola, e em galerias de arte nos EUA, México, Canadá, Colômbia e Brasil. Assinou o figurino do filme sobre Lina Bo Bardi do cineasta inglês Isaac Julien e do Musical ‘Brasilis: Circo Turma da Mônica’. Sua obra transita entre a moda e a arte pelo mundo.
www.carolbarreto.net
@carolbarretocob
@modativismo
Assistente de Redação: David Santos

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