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Em memória de Jether Ramalho, um “evangélico raiz”

No domingo, 28 de junho, aos quase 98 anos, o mestre e grande companheiro nos deixou

Foto: Reprodução Frederico Füllgraf Foto: Reprodução Frederico Füllgraf
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Enquanto o número de mortes de brasileiras/os por Covid-19 ultrapassava a meia centena de milhares, e um evangélico bolsonarista suplantava os limites da ética com um currículo forjado para o Ministério da Educação, recebemos a notícia do falecimento de Jether Pereira Ramalho.

Se alguém não sabe quem é Jether Ramalho, desconhece o mundo evangélico brasileiro do compromisso com os valores cristãos! Pois é, esta história de se assumir que evangélicos são os líderes midiáticos, os cantores do mercado gospel e os youtubers dos milhões de cliques, colocando todos num mesmo pacote e ignorando uma história que remonta ao século 19 no Brasil, só serve para apagar uma memória rica, significativa e criadora de esperança para estes tempos tão duros que vivemos.

Por isso hoje, este espaço é dedicado ao Jether, um “evangélico raiz”, recorrendo ao jogo de palavras da moda que afirma “raiz” ser o gosto autêntico, o profundo, enquanto “Nutella”, marca de creme de avelã, representa o artificial, o raso.

Filho de um pastor da Igreja Evangélica Congregacional, Jether Ramalho nasceu em 1922, no Estado do Rio de Janeiro. Formou-se cirurgião dentista, mas seu compromisso com a justiça, nascido no movimento da juventude evangélica, o levou a fazer Ciências Sociais e mudar o rumo de sua vida.

Na história do ecumenismo (de cooperação entre as igrejas pela paz e a justiça), os movimentos de juventude evangélica (estudantil e no interior das igrejas) tiveram papel primordial. Eles formaram lideranças expressivas para as igrejas e para o movimento ecumênico nacional e internacional durante a primeira metade do século XX.

Nos anos de 1940, a União Cristã dos Estudantes do Brasil atuava com secundaristas e universitários, sob a assessoria do pastor presbiteriano Jorge César Mota. Eram realizados acampamentos, encontros, atividades evangelísticas, serviços, discussões teológicas, debates sobre temas científicos, estudos bíblicos e congressos no exterior. A motivação era, reconstruindo o conceito bíblico de igreja, promover o testemunho no meio estudantil e, em atitude crítica, formar cristãos responsáveis na sociedade.

O movimento de juventude evangélica formou lideranças que se tornariam importantes para eventos posteriores da história do protestantismo e do movimento ecumênico brasileiro como Adauto Araújo Dourado, Benjamin Moraes, Billy Gammon, Boanerges Cunha, Lysâneas Maciel, Waldo César, Rubem Alves e Jether Ramalho!

Jether investiu a vida em projetos sociais do movimento ecumênico brasileiro, especificamente na Confederação Evangélica do Brasil nos anos 1950. A CEB era uma associação de seis das principais igrejas evangélicas brasileiras, criada em 1934: a Congregacional, a Presbiteriana do Brasil, a Presbiteriana Independente, a Episcopal, a Metodista e a Luterana. A CEB foi dissolvida pela ditadura militar e a repressão interna nas igrejas a partir de 1964, mas suas lideranças mantiveram acesa a chama do compromisso de fé com a vida, a paz e a justiça, e o Jether entre elas. Ele e seus irmãos e irmãs de fé ousaram naqueles anos de ditadura a levantar a bandeira do Evangelho como um passo importante de resistência e luta pela democracia.

Com esta gana pela justiça, Jether Ramalho foi um dos inspiradores e fundadores do CEI (Centro Ecumênico de Informação), depois CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), mais tarde Koinonia Presença Ecumênica e Serviço; do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), junto com o Frei Carlos Mesters; e do CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular). Foi um dos principais assessores das Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica. Por muitos anos, Jether Ramalho atuou como editor da Revista Tempo e Presença, e se tornou uma das mais destacadas e comprometidas lideranças do movimento ecumênico na América Latina e no Brasil. Trabalhou também em projetos do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, tendo servido em uma de suas comissões.

Até quando pode ter forças, atuou na educação para o diálogo, a paz e a justiça em várias frentes. Neste domingo, 28 de junho, aos quase 98 anos, o mestre e grande companheiro Jether Ramalho nos deixou. Aprendi muito com ele quando eu, recém saída da Faculdade de Jornalismo da UFF, ingressei nos quadros do CEDI, depois Koinonia.

A fidelidade ao Evangelho e a paixão ecumênica do Jether eram contagiantes! Não havia repressão, fechamento ou obstáculos que a desvanecessem! Sua memória como Diretor do Departamento de Ação Social da Confederação Evangélica do Brasil rechearam as páginas da minha dissertação de Mestrado e me incentivaram a torná-la sempre viva no meu próprio engajamento cristão. No batismo do meu filho Guilherme, na Igreja Metodista Filadélfia, em Duque de Caxias, Rio, Jether e Lucília se fizeram presentes, marcando bem a festa ecumênica que foi aquela cerimônia com uma linda palavra. Leigo congregacional era tido por muitos como pastor. E era mesmo! Um pastor de esperanças, como se referiu Rubem Alves a ele! Esperança ele tinha de sobra, acreditando sempre na potência dos movimentos progressistas a despeito das tantas pedras no caminho.

Sei que foram quase 98 anos de vida bem vividos e era tempo de ele descansar ao lado da tão querida Lucília. Mas a dor no coração é que o Jether nos deixe neste tempo tão difícil que não nos permite reunir para prestar as homenagens que ele merece! Mas a herança que ele deixa é sua marca entre nós, mesmo com tantos “evangélicos nutela” espalhando desesperança no ar! Não há vírus que contamine esta “raiz”!

RECESSO

A partir deste 2 de julho estarei em recesso. Retornarei aos textos desta Coluna na primeira semana de agosto. Até lá!

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