Diálogos da Fé

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Xenofobia: os homo sem sapiens

Os lamentáveis ataques aos venezuelanos em Roraima ignoram a própria formação étnica do Brasil e a história da humanidade

Venezuelanos embarcam para São Paulo
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Ao longo dos milhões de anos desde seu surgimento, os agrupamentos humanos se deslocaram por todo o território planetário. É certo que os primeiros homo sapiens se desenvolveram e se deslocaram desde a África pelas diversas frações de terra que conhecemos hoje por continentes.

Condições geográficas e climáticas foram responsáveis por estes primeiros deslocamentos que possibilitaram o surgimento de comunidades humanas em toda a parte habitável do globo terrestre. Uma característica fundamental para entendermos a formação de agrupamentos humanos diz respeito à capacidade e necessidade de mover-se por longas distâncias à procura de alimentação e abrigo. Ou seja, sobreviver.

A mesma necessidade motiva ainda hoje deslocamentos devido a situações políticas e econômicas hostis. Guerras, regimes autoritários, desastres, grandes crises econômicas fazem com que os seres humanos transitem em busca de condições adequadas de existência. Mais do que sobreviver, buscamos hoje viver em plenitude.

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Mas não podemos esquecer ainda da diáspora forçada na qual a hostilidade veio do próprio humano. Desde a Europa, impérios submeteram africanos à condição mais exploratória e degradante que existe: a escravidão.

A identidade das Américas, sobretudo do Brasil – para onde mais de 40% dos cerca de 12 milhões de africanos escravizados foram trazidos – está intimamente ligada a este episódio abominável vivido por nossos ancestrais e que ainda hoje carece de reparação.

De outra maneira, a resistência, a força e a riqueza cultural desses diferentes povos que aqui chegaram marcaram extraordinariamente toda a cultura que hoje entendemos por brasileira.

Talvez um dos traços culturais mais marcantes dessa contribuição africana na construção do Brasil seja justamente nosso idioma, tão diverso do português original tanto em palavras quanto no próprio ritmo da fala.

Mesmo as narrativas bíblicas estão repletas de passagens onde os povos foram obrigados a migrar para fugir da condição de escravizados ou viver em exílio depois da destruição de suas cidades, ou mesmo por uma perseguição política dos poderes instituídos.

A religião cristã se referencia nessa trajetória de migração forçada em diferentes situações. O próprio Cristo, para além dos seus ensinamentos de acolhida e compaixão, tem seu nascimento circunscrito em uma situação de trânsito migratório forçado.

De acordo com os evangelhos, José e Maria, originários de Belém na Judeia, viviam em Nazaré quando foram obrigados a retornar ao seu local de nascimento devido ao recenseamento ordenado pelo imperador romano César Augusto.

Logo em seguida fugiram para o Egito depois de tomar conhecimento da ordem de Herodes, rei da Palestina, de matar todos os meninos nascidos em Belém naqueles dias.

Chegamos pois até nossos dias em um país miscigenado e colonizado, atravessado por diversos fluxos migratórios desde a diáspora forçada africana, passando por imigrações italianas e japonesas no século XX até os recentes fluxos migratórios de sírios e latino-americanos de diversos países. E ainda um país de maioria religiosa cristã que, como vimos, tem sua história também marcada pela migração.

Por tudo isso, parece inconcebível episódios de xenofobia como o ocorrido no município de Pacaraima, em Roraima. Em 19 de agosto, alguns moradores da cidade expulsaram cerca de 1,2 mil venezuelanos pela fronteira, depois de um roubo envolvendo quatro migrantes e falsas notícias propagadas pelas redes sociais e entre a população.

Aqueles que estavam alojados em barracas próximas à fronteira, em condições precárias e de alta vulnerabilidade, tiveram seus pertences queimados sob a cantoria ensandecida do Hino Nacional brasileiro. Enquanto outros tantos moradores locais registravam o momento com euforia e orgulho.

A tristeza que nos acomete com tal episódio é por todos estes que, em situação de vulnerabilidade e desproteção, se depararam com a barreira do ódio e da ignorância. Mas também por estes últimos que, limitados pelas fronteiras forjadas, se distanciaram de seu território mais profícuo, sua própria humanidade.

Tão distantes do conhecimento sobre os processos históricos que nos constituem, se tornam terrenos férteis para se plantar fantasias limitadas e limitantes como o ufanismo e a xenofobia.

A nação, assim como os sentimentos associados a ela, o nacionalismo ou patriotismo, são construções sóciohistóricas. Não são dados naturais absolutos, foram instituídos em processos de dominação política e econômica sobre determinado território e determinado agrupamento humano, forjando em longos processos características comuns e sentimentos de pertencimento.

Como humanos, somos uma espécie de mosaico vivo formado de muitos fragmentos, de muitas peças de diferentes traços e matizes sem limites claros e em constante movimento. Estamos sempre em transformação.

Quem nega esta realidade nega a própria condição humana. É por isso que os limites que aceitamos e auto-impomos a nossa existência nos afastam cada vez mais de nossa sapiência, nossa capacidade enquanto seres pensantes repletos de possibilidades, diversos por excelência e aptos a aprender e desenvolver justamente pelo contato que estabelecemos uns com os outros.

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