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Um desafio à religião do bem-estar

Quem sabe os coachings e os fiéis se lembrem de, pelo menos, fazer uma oração por quem não sabe se vai estar vivo amanhã

Sabemos nada sobre as elites e muito pouco sobre as camadas médias. Nosso fetiche mesmo são os pobres. Na foto, menino em meio à demolição da Favela do Metrô, no Rio, em 2014.
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O Cristianismo, nas suas origens, é uma religião social, de dimensão comunitária, voltada para o Outro para além do Eu. Há inúmeros exemplos, nos Evangelhos, registros dos ensinamentos e da vida de Jesus, o Mestre do Cristianismo, que corroboram esta afirmação. O ensino do seguimento de Jesus, por palavras e por ações, revela uma religião do amor e da misericórdia, da partilha, da amizade, do serviço, da doação, da tolerância, inclusão, da justiça. Tanto que a atenção ao Outro em necessidade (as minorias, os pequeninos) é fonte de redenção.

No decorrer da história do Cristianismo, como realização humana, o egoísmo e o individualismo foi se impondo em muitas expressões e a dimensão comunitária e coletiva foi muito prejudicada. No século XVIII, o inspirador da Igreja (evangélica) Metodista John Wesley precisou afirmar: “O Cristianismo é essencialmente uma religião social; reduzi-la tão só a uma expressão solitária é destruí-la”.

Nesse sentido, há vaivéns de grupos cristãos, os mais distintos, nas mais diferentes épocas, tendendo mais para o social, o coletivo ou mais para o individual e o solitário. No Brasil, as propostas de uma religião do bem-estar vêm fazendo muito sucesso. Por meio de práticas de coaching cristão, há oferta de conforto, de prazer religioso, sem autodoação, em que basta se enquadrar nesta leitura do Cristianismo individual, com uma única exigência, uma “vida íntegra” (pureza do corpo, habilidade nos negócios financeiros, pureza nos relacionamentos com simplicidade, sinceridade sem tirar vantagens sobre outros, consciência limpa de viver a verdade).

Só que a vida não é assim tão enquadrada. É complexa, dinâmica e controversa. Expõe seus desafios e contradições a cada momento e desafia a religião do bem-estar.

Uma coincidência marcou o domingo, 26 de maio, no Rio de Janeiro. A manifestação de rua em apoio ao presidente da República foi convocada por ele para o mesmo dia em que já estava marcada uma outra, a das populações de favelas e periferias da cidade, sob o mote “Parem de nos matar”.

Enquanto os apoiadores do presidente ocupavam a rua pelas “reformas” de bem-estar, entre elas o “Pacote Anticrime”, que oficializa o direito das execuções em ações policiais sob a capa da “legítima defesa”, a população negra e empobrecida das favelas e periferias, clamava.

Vale registrar que veio à tona nesta terça-feira 28 que os cinco policiais que alteraram a cena da execução de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, no Morro da Providência, em abril de 2017, para simular legítima defesa, foram absolvidos. Um vídeo gravado por pessoa do local mostrou que os militares, depois de matarem o rapaz, colocaram uma arma na mão do morto e deram dois tiros para o alto. O juiz da 2ª Vara Criminal Daniel Werneck Cotta beneficiou os PMs com um parecer, no mínimo, surpreendente: o caso que “aparentemente retrate conduta reprovável, possivelmente ilegítima e ilegal […] não permite a presunção de que igualmente teriam agido para causar o resultado morte da vítima”.

O clamor “Pare de nos matar” evidencia que só no primeiro trimestre de 2019 no Rio de Janeiro 434 pessoas foram mortas pelas Polícias Militar e Civil. Quase cinco mortes por dia, recorde para o período de 21 anos de estatísticas do Instituto de Segurança Pública do Rio, uma alta de 13% em relação ao mesmo período de 2018. Uma escalada de execuções que começou durante a intervenção militar na cidade em 2018 e cresceu com o governo de Wilson Witzel (PSC), cuja política classificada de “segurança pública”, representa o extermínio oficial de suspeitos, com tiros à luz do dia em locais públicos, a partir de helicópteros, inclusive.

Foi neste contexto que ocorreram execuções como a de Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, quando ia para a escola na Favela da Maré; as dos 15 jovens em ação policial no Morro do Falet; as do músico Evaldo Rosa, atingido por alguns dos mais de 80 tiros de militares contra o seu carro e do catador Luciano Macedo que tentou ajudá-lo, em Guadalupe; a do porteiro da Fundação Osvaldo Cruz Romulo Oliveira da Silva, atingido por atirador de elite quando chegava em casa, na Favela da Coreia, para citar algumas entre as centenas de histórias.

A situação não é diferente em São Paulo, sob o governo João Doria: policiais do Estado mataram 213 pessoas suspeitas em operações no primeiro trimestre de 2019 – uma alta de 8% em relação ao mesmo período do ano passado.

Eliminação de pessoas. Descarte de vidas num processo de higienização social, com precedentes, talvez, apenas no tempo da colonização do País. No mesmo domingo das manifestações apareceram pilhas de mortos nos presídios de Manaus. Chegavam a 55 os mortos na terça-feira. A acusação é de que os assassinatos resultam de rivalidades de facções dentro dos presídios, em disputas de poder dentro das prisões. Um massacre com decapitações já havia ocorrido em presídios de Manaus em 2017, com 56 mortes. Por que a trágica experiência de 2017 não gerou ações preventivas e 2019 repete o drama? Vidas que não contam. Vidas descartadas.

E está claro que quem conta hoje é quem pode pagar pela gasolina de cinco reais o litro, pelo gás de cozinha de 90 reais o botijão, pelo plano de capitalização para se aposentar, pela educação particular, pelo tratamento de saúde privado, pelas versões de alimentos sem agrotóxicos… Vidas crucificadas.

Eis aí um desafio ao Cristianismo do bem-estar. Um desafio à fidelidade, às origens: do coletivo, do ser para o Outro, do amor incondicional. Quem sabe os coachings e os fiéis se lembrem de, pelo menos, fazer uma oração por quem não sabe se vai estar vivo amanhã… Primeiro passo para clamar em bom tom e agir para que o sol da justiça nasça para todos. Quem quer tomar esta cruz?

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