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Sobre neopentecostais, bodes expiatórios e intolerância religiosa

Toda e qualquer generalização e enquadramento de pessoas e grupos sem base concreta é injusta e fonte potencial para intolerância

Marcha para Jesus pela Família e pelo Brasil, em Brasília (Foto: Carolina Antunes/PR)
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2019 foi o ano em que o segmento evangélico denominado neopentecostal protagonizou espaços nas mídias. Reportagens e postagens de influenciadores digitais e “pessoas comuns” têm apresentado os neopentecostais como “vilões” das mais diversas situações: como gananciosos exploradores da fé, como responsáveis pela chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, como ocupantes do seu governo, como ameaça aos cargos nos Conselhos Tutelares, como torturadores de indígenas, como “traficantes de Jesus” e “narcopentecostais”.

Depois de acompanharmos muitas reportagens e postagens, que trazem conteúdos verdadeiros, com críticas pertinentes e necessárias, mas marcados por imprecisões, podemos chegar a, pelo menos, três deduções: 1) Há uma generalização equivocada em relação a estes grupos, antes classificados apenas como “evangélicos”. Depois de certa visibilidade alcançada por evangélicos progressistas, descobriu-se o termo “neopentecostais” que passa a ser, nas mídias, igualmente generalizado como sinônimo de “gente alienada”, “religião mal intencionada”. 2) A generalização acaba se tornando uma forte expressão de intolerância, afinal, a ignorância em relação a este segmento cristão, que é extenso e plural, leva autores de matérias e postagens a tomarem casos e personagens particulares e enquadrarem todos os fiéis classificados como neopentecostais num único e condenado perfil. 3) A perplexidade de pessoas e grupos os mais diversos com os descaminhos assumidos pelo país após a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, certamente leva à culpabilização de agentes tidos como responsáveis por tal situação. Entre estes agentes estão os evangélicos e, como dito acima, a identificação dos neopentecostais como sinônimo de conservadorismo e manipulação da fé para fins políticos.

Toda e qualquer generalização e enquadramento de pessoas e grupos em avaliações tipificantes sem base concreta, sem informação e dados, é injusta e fonte potencial para intolerância. Quem são, na realidade, neopentecostais? Por que “neo”? Qual é a diferença dos “pentecostais”? São todos evangélicos? Estas perguntas evitariam generalizações injustas e preconceituosas e a resposta a elas favoreceriam o desarme da armadilha de se homogeneizar grupos religiosos tão plurais.

 

Tentativas de tipologização dos evangélicos (os não católicos) são muitas, sempre insuficientes, e advêm de diferentes fontes na academia e fora dela. Uma forma simplificada poderia dizer de:

– Históricos: ligados ao processo da Reforma Protestante do século XVI, que chegaram ao Brasil por intervenção estrangeira de imigrantes e de missionários, como Congregacionais, Presbiterianos, Metodistas, Batistas, Luteranos, Episcopais/Anglicanos;

– Pentecostais: dissidentes dos históricos, com experiência mística intensa com o Espírito Santo, o que chamam de segundo batismo, e que chegam ao Brasil no século XX por meio de missionários estrangeiros e se multiplicam em expressões nacionais urbanas diversas ao longo das décadas, como Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular, Casa da Bênção, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Nova Vida, entre outras.

– Neopentecostais: termo criado pelo pesquisador Ricardo Mariano, da USP, para a ramificação nacional dos pentecostais marcada menos pelo segundo batismo e mais por expressões religiosas espetaculares (cura e exorcismo) e pela doutrina da Teologia da Prosperidade (bênção de Deus determinada por elementos materiais como renda, propriedades, saúde, felicidade na família). Algumas igrejas têm organização na forma empresarial com várias filiais e outras são uma única congregação, por vezes bem pequena: Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, e uma miríade de igrejas.

A presença mais intensa dos grupos evangélicos no espaço público, por meio de posicionamento político, inserção na indústria cultural e no mercado de bens e serviços, tem mostrado que há afinidades ideológicas que estão para além das doutrinas e teologias e das fronteiras historicamente construídas como descrito acima. Portanto, esta tipologia também é insuficiente.

Quem é contra qualquer forma de intolerância não pode abrir mão da compreensão da diversidade e da complexidade que envolvem todos os grupos religiosos. Há determinadas denominações neopentecostais que nunca colocaram os pés numa aldeia indígena, muito menos torturaram seus habitantes. Da mesma forma, fiéis neopentecostais podem ter optado por candidatos distintos nas eleições de 2018, estando entre aqueles prováveis mais de 30% de evangélicos que não depositaram voto em Jair Bolsonaro.

Vale registrar que é um erro dizer que neopentecostais compõem o governo Bolsonaro. Entre os ministros declaradamente religiosos, estão dois pentecostais (Damares Alves e Marcelo Álvaro), um luterano (Onix Lorenzoni), um presbiteriano (André Mendonça), um batista (Luiz Eduardo Ramos), fora os católicos. Ou seja, nenhum neopentecostal.

O filósofo e historiador francês Renê Girard ajuda na reflexão sobre a superação da intolerância, com seus estudos sobre a figura do “bode expiatório”. Diante de crises e antagonismos, há uma tendência humana, segundo Girard, de se criar alianças contra um inimigo comum, que polarizará cada vez mais adversários. É o que se chama do fenômeno do “bode expiatório”. O filósofo explica que a partir do momento em que restam apenas antagonistas, em vez de divisão e fragmentação, há mais polarização e, no fim, se elegerá um indivíduo ou grupo qualquer como o culpado pela crise, ou, bode expiatório.

Nas eleições de 2018, ficou clara a eleição do Partido dos Trabalhadores como bode expiatório, da parte do polo conservador vencedor. Em 2019, o outro polo, perplexo com os resultados, parece cometer o equívoco de escolher os neopentecostais como o vilão da vez.

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