Diálogos da Fé

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Sobre a reconversão da Hagia Sofia em mesquita e neo-otomanismo

A reversão da Hagia Sofia é uma ‘reconquista’ da cidade de Istambul

Basílica de Santa Sofia, em Istambul. Foto: Public Domain Pictures
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Em 10 de julho de 2020, o Conselho de Estado da Turquia revogou a decisão de 1934 da mesma corte sobre a conversão da antiga catedral e mesquita de Hagia Sofia. A decisão foi repercutida internacionalmente e teve reações negativas em geral, e até por parte de algumas autoridades islâmicas. Na realidade, a decisão dividiu aqueles muçulmanos que têm conhecimento sobre o caso em dois grupos. Enquanto alguns, mais da base popular e da ala islamista, comemoraram esta decisão, outros tiveram cautela e defendiam a ideia de que o prédio permanecesse como museu, como o foi desde 1934. 

Eu pessoalmente demorei para me manifestar com um texto dedicado a esse assunto, pois a polarização no ambiente político da Turquia me levou a esperar “a fumaça sumir um pouco”. Enquanto isso, acompanhei as notícias sobre a reabertura da “mesquita” e respondia perguntas de alguns amigos em particular. Descobri que a primeira oração nesse antigo prédio, que por 980 anos serviu de catedral orotodoxa bizantina e por 480 anos de mesquita, seria realizada no dia 24 de julho com a cerimônia da oração e sermão de sexta-feira, a oração semanal dos muçulmanos. Pois vejo importância no discurso seria empregado durante o sermão. Não seria, obviamente, um sermão qualquer. Eu esperava algo mais específico e dedicado a esta data. 

 

Assim foi quando eu assisti ao primeiro sermão de sexta-feira na “mesquita Hagia Sofia”. Na realidade a minha expectativa era que o próprio presidente Erdogan subisse ao púlpito para fazer o sermão. Afinal, ele é o governador do país que vem de uma base islamista, a qual tem se transformado em um neo-otomanismo disfarçado de islamismo. Porém, o sermão foi proferido pelo presidente da Diretoria de Assuntos Religiosos da Turquia, Dr. Ali Erbas. Como já dissera, o sermão foi dedicado à reabertura e aqui notarei alguns trechos que vou remeter a minha implicância com o neo-otomanismo disfarçado de islamismo.

Primeiramente, Dr. Erbas subiu ao púlpito com uma espada na mão. Isto era, até onde eu saiba, uma tradição dos sultões otomanos, que eram também imãs. Ou seja, tinham a autoridade de reger uma oração ou, ao menos, proferir sermões. Se bem é que isto remete ao período primordial do islam. O próprio profeta Muhammad, como o governante da cidade-estado de Medina, proferia sermões, mas sem espada na mão. 

Outro assunto que me chamou atenção foi o verso do Alcorão e o hadice do profeta Muhammad. O verso fala sobre a construção das mesquitas e dedica essa atitude apenas àqueles que creem em Deus e no Dia do Juízo Final (Alcorão 9:18). O hadice mencionado menciona um anúncio do profeta Muhammad sobre a conquista da cidade de Constantinopla. A afirmação é a seguinte: “A Constantinopla com certeza será conquistada. Que belo comandante é o comandante (que a conquistará) e que belo exército é este exército”. Já na oração o Dr. Erbas recitou os primeiros versos da surata al-Fath (a Conquista). 

Voltando à afirmação anterior de “neo-otomanismo disfarçado de islamismo”, primeiramente a espada na mão do ministro da palavra (assim chamarei para facilitar o entendimento) é uma referência ao período otomano. Já no período da governança do presidente Erdogan, desde 2002 como premiê e desde 2014 como presidente, as tendências ao otomanismo e exaltação do sultão Abdulhamit II como um ídolo do otomanismo estiveram nas pautas dos islamistas na Turquia, pois na era dele o otomanismo surgiu como uma forma de “salvar a pátria” e ele foi vítima de um golpe militar em que Mustafa Kemal Ataturk também participou. Alimentando-se dessa base, o partido que está no poder há 18 anos obteve apoio popular enorme, pois, de certa forma, a aplicação rígida da laicidade geraram reação na base popular do país. Inclusive, foi este o motivo de uma linha política islamista muito radical no início da década passada sobressaiu. 

Por outro lado, a menção do hadice do profeta e a recitação da Surata de Conquista são referências ao ano de 1453, data da tomada de Constantinopla pelos turcos, pois depois de 25 anos os partidos islamistas perderam a prefeitura de Istambul apesar da eleição repetida no ano passado. Nesse sentido, a reversão da Hagia Sofia é uma “reconquista” da cidade de Istambul que foi perdida ano passado para o partido fundado por Ataturk. De certa forma, o presidente Erdogan tentou mostrar que quem manda no país é ainda ele, pois ele mesmo certa vez havia afirmado que quem tem a prefeitura de Istambul manda na Turquia toda. 

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