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Sínodo da Amazônia e Dulce dos Pobres, um acaso a ser refletido

Coincidência temporal e espacial um Sínodo sobre um dos mais importantes biomas do planeta coincidir com a canonização da religiosa

Irmã Dulce, a primeira mulher brasileira a ser declarada santa pela Igreja Católica. Créditos: EBC
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Qualquer semelhança, acaso ou possível coincidência merecem ser refletidos. Refiro-me hoje a uma coincidência temporal e espacial em que um Sínodo previsto para tratar da vida dos povos da Amazônia e de um dos mais importantes biomas do planeta coincida justamente com a data da canonização de uma religiosa brasileira, a Irmã Dulce. Estranhamente a cobertura do segundo evento pela mídia superou em muito a cobertura do primeiro e isto convida à reflexão.

Que pensar sobre a atitude de quem convocou o Sínodo e também presidiu a canonização diante da coincidência? Seria algo irrefletido? Representaria ao mesmo tempo dois mundos religiosos? Tentaria uni-los como se pretende unir a alma ao corpo? Quem sairia ganhando? Estas perguntas não têm uma resposta clara… Por isso faço elucubrações e convido ao pensamento.

Por curiosidade perguntei a algumas pessoas de meio popular se sabiam o que estava acontecendo no Sínodo e poucas sabiam. Mas, quando perguntei sobre Irmã Dulce dos pobres, muitas tinham visto pela TV a missa de canonização e estavam encantadas de ter uma santa brasileira que desde sua morada celeste iria ajudar os pobres.

Muitas pessoas querem agora adquirir a imagem da santa para pedir proteção diária e buscam saber quando estas estariam no mercado. Não faltam também os pedidos por medalhas e fitinhas com o nome da nova santa. Na cerimônia religiosa em Roma a presença de políticos e até do vice-presidente da República brasileira deram uma nota de grande importância nacional à canonização.

Tentei imaginar cenários diferentes do Sínodo. Primeiro imaginei que a Igreja Universal do Reino de Deus com a Igreja da Graça e outras tivessem convocado uma assembléia nacional e internacional para discutir o problema da Amazônia. Onde se realizaria? Talvez num grande estádio de futebol? Maracanã ou…? O que diríamos? Certamente os católicos, especialmente a hierarquia, estariam descontentes visto que estariam perdendo terreno na discussão dos grandes problemas nacionais, latino-americanos e mundiais. Diriam que essas Igrejas estariam manipulando o povo em benefício próprio e aumentando sua influência na Amazônia, o que seria lamentável para eles.

 

Outro cenário seria a convocação de uma Assembléia Internacional dos Povos Indígenas para analisar e tomar medidas sobre a destruição da floresta amazônica. Poderiam levantar uma enorme tenda numa parte da floresta, porém o acesso seria sem dúvida difícil. O recurso para alojamento e tradução dos vários idiomas indígenas e outros problemas logísticos seriam também difíceis. Os diálogos indígenas teriam certamente pouca cobertura da mídia oficial e pouca força política diante dos governos atuais em aliança aberta com o capital nacional e internacional.

Mas, um Sínodo no Estado do Vaticano, capital internacional do mundo católico, em plena Roma, cidade imperial, e uma das mais belas e visitadas pelo turismo internacional tem todas as facilidades para um evento desse porte. E, além disso, quando príncipes da Igreja deixando de lado suas vestes sacerdotais e principescas se misturam a alguns indígenas, a agentes de pastoral, a simples freiras, padres e leigos e, com olhar magnânimo os saúdam, ouvem suas reivindicações com olhar circunspecto algo acontece.

A ilusão do poder próximo dos corpos dos fiéis anuvia o olhar e obscurece o senso crítico de muitos. A emoção de experimentar a grandeza transformada em proximidade física entorpece e passamos a acreditar que uma mudança de fato nos destinos amazônicos seria talvez uma possibilidade real. Afinal contam com Deus para toda a transformação em vista do bem de todos, mas nem se lembram das alertas de Jesus sobre os sepulcros caiados e a astúcia das raposas.

Papa Francisco, o grande realizador do Sínodo da Amazônia (Foto: Tiziana Fabi/AFP)

Mas de repente, não muito de repente, se dá outro evento no mesmo local e no mesmo tempo. O poder clerical representado pelo Papa, Sua santidade e pelas eminências e excelências beatíssimas e outros superlativos anacrônicos revelam seu poder celeste. Em nome de Deus Pai todo poderoso penetram nos átrios celestes e entronizam novas santas e santos para veneração popular. Agora a nova santa brasileira pode ser invocada para ajudar a muitos e até os povos da Amazônia.

Aqui, outra lógica religiosa para além das relações éticas e políticas é introduzida. Nela o milagre vigora, e a natureza contrariada transforma o corpo debilitado em corpo revitalizado por intervenção magnânima dos santos invocados. Ultrapassam-se as expectativas da ciência e, de certa forma até a negam. Uma fé inacessível à compreensão humana se impõe. A lógica individual, a piedade individual, a problemática individual ofusca o coletivo das queimadas na floresta, a falta de demarcação de terras, a falta de água potável na maioria dos lugares pobres do mundo, a disputa entre os que se apossam da água e da terra para encher seus bancos eletrônicos de moedas artificiais poderosíssimas. Tudo acontecendo no mesmo lugar, quase ao mesmo tempo, num ilogismo de lógicas contraditórias em nome da fé, subsistindo numa mesma instituição, num mesmo mundo aparentemente comum.

E é uma mulher, a doce Dulce que está fadada a sustentar essas insuportáveis contradições. É ela com o corpo coberto de um hábito tradicional, mostrando apenas o rosto franzino que é elevada aos altares, que é aureolada em sinal de santidade, que é apresentada como ideal feminino de pobreza, castidade e obediência. É ela a nova mãe dos pobres que de seu pequeno trono celeste poderá solucionar a falta de hospitais, de remédios, de pessoal especializado, de comida sem agrotóxico, de água potável, o abandono.

Ela, ideal de santidade distante das disputas dos direitos das mulheres, dos feminismos e outros movimentos sociais, curou milagrosamente três pessoas e foi santificada… Para ela, a multidão de fiéis e os políticos dirigem os olhares e aplaudem. Para ela existe um reconhecimento oficial por parte do poder religioso e político irmanados nesse evento de irrupção do poder terrestre nas moradas celestes. Afinal, curar um cego é talvez um milagre mais difícil do que reconhecer aos indígenas o direito à terra ou impedir que empresas inescrupulosas destruam a floresta e outras poluam os rios. Ter o povo irmanado em praça pública emocionado com uma ou três curas é mais consolador do que ver um grupo de jovens gritando por direito à educação, ou um grupo de indígenas afirmando o direito a sua terra, a sua língua, a suas crenças e a seus costumes.

Somos camaleões mudando de cor e direção para servir aos nossos próprios interesses!

Mas, se pensássemos que debaixo das cores dos camaleões há vidas a serem preservadas, há espécies que dependem umas das outras… E se pensássemos na vida breve de cada camaleão, no seu caminho individual vital para a vida e para a morte… Se pensássemos que o instante da vida é apenas esse que nos é dado… Elucubrações senis talvez… Discursos sobre nossa finitude pessoal, social, ambiental não interessam à maioria que aposta em conseguir a viagem de seus sonhos, o último modelo de celular, o corpo escultural malhando seus músculos até a exaustão. Não interessam para os que têm planos para construir grandes basílicas para a nova santa, para a rede hoteleira e outros benefícios para nossa economia.

Lamentos de minorias, minimizados, roucos e loucos saindo de corpos alquebrados que não falam sobre a ‘ecologia integral’ mas vivem apenas tentando comer o pão cotidiano muitas vezes reduzido às migalhas que caem das mesas dos grandes senhores do mundo. Lamentos de mulheres, crianças, jovens misturados aos discursos oficiais como ensaios constantes para lembrar as dores reais de nossos corpos.

Onde estamos? Continuamos aqui, por coincidência, tentando sobreviver à falta de pão, de água, de ar puro, de casa, de ternura, de direitos, de gente que queira conversar sobre as coisas velhas, as miúdas capazes de manter a vida como um bem comum coletivo.

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