Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Sexta-feira é dia de branco

Vestir branco é uma obrigação para os adeptos do candomblé e uma forma de reafirmar nossa identidade e pertencimento

O branco simboliza vida e morte, gestação e renascimento
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Oxalá é o grande orixá da criação e em sua honra os iniciados no candomblé vestem-se de branco todas as sextas-feiras, cumprindo alguns outros resguardos de ordem alimentar e comportamental. A cor é, no entanto, utilizada em muitas outras ocasiões, por diversos motivos.

Branco é a cor que festeja o ano novo. Este hábito dos terreiros disseminou-se há muito tempo na cultura brasileira, extrapolando o significado religioso.

De fato, é a cor mais indicada para o início de um novo ciclo. A cor do nascimento e do renascimento, ligada a todos os ritos de passagem e às transformações.

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Branco é ausência, portanto traz em si todas as possibilidades de criação. A cor que simboliza a atmosfera e o próprio Oxalá, o maior entre todos os orixás, aquele que recebeu de Olodumare a missão de criar o mundo, na qual falhou e foi substituído por Odudua, o grande herói-civilizador que criou a Terra e fundou a cidade de Ilê-Ifé, o berço da tradição ioruba.

Oxalá, então, foi incumbido de moldar no barro os seres humanos para que o Deus Maior, Olodumare, lhes insuflasse o sopro da vida. O branco é sua cor pelo fato de preceder o nascimento e por estar conectado à concepção, sendo o grande provedor do poder procriador masculino.

No momento da alvorada, exatamente quando a abóbada celeste reaparece, faz-se o culto a Oxalá. Um momento em que o céu está completamente vazio de cores, mas pleno em potencial de manifestação. Um instante que simboliza e revive a criação do universo, que remete ao silêncio absoluto e de profunda proximidade com o sagrado.

Muitos ritos do candomblé começam exatamente no momento da alvorada. O ritual das “Águas de Oxalá”, que inspirou a famosa Lavagem do Bonfim, é um deles. Nessa ocasião, entre inúmeros preceitos, os adeptos guardam um completo silêncio e vestem-se inteiramente de branco, mantendo abstinência sexual e privando-se de comidas temperadas com sal e azeite de dendê, carnes vermelhas e bebidas alcoólicas.

Até que o primeiro facho de luz rompa a escuridão, todos os assentamentos e objetos sagrados de Oxalá devem estar devidamente lavados com águas das mais puras fontes.

Essa celebração marca o início de um novo ciclo e se realiza no mês de janeiro (em casas mais ortodoxas acontece em setembro, quando se comemora a colheita dos inhames novos na África Negra e o começo de um novo ano para os não-cristãos).

A morte precede a vida, assim como a noite precede o dia. Essa ideia de escuridão remete inclusive ao ventre, à gestação. “Dar à luz” é uma expressão que traduz o momento do parto. Conceber, gerar, é o mesmo que preencher o vazio noturno, nutrindo de energia, de axé, as potencialidades até que a vida irrompa numa manhã, numa alvorada, que representa o renascimento, um novo ciclo.

Desta forma, o branco também é a cor da morte, por isso, no candomblé, exprime o luto. Ao falecer, um iniciado obrigatoriamente é sepultado com roupas brancas. Em todos os ritos fúnebres, o branco fosco, ou seja, sem brilhos e com o máximo de simplicidade, é indispensável.

Símbolo de renascimento, o processo iniciático nos terreiros encontra no branco sua cor essencial, pois representa a conquista diante da primeira batalha da vida que é justamente o momento da inseminação.

Consagração e reconhecimento são significados que evocam o poder de Oxalá sobre a vida, em atos que remontam à capacidade de se reerguer ou renascer frente aos desafios, demonstrando que o início da criação representa a vitória da vida sobre a morte.

Oxalá é o pai de todos, o pai da criação, o pai da humanidade. O mais velho entre todos os orixás, filho dileto de Olorun, senhor da sabedoria e da paz. O branco imaculado de Oxalá remete a valores universais, à união, à conciliação, à concórdia.

Sua associação ao Senhor do Bonfim se deve a esses princípios. Calma, serenidade, equilíbrio são seus atributos. Dono da maior de todas as riquezas, aquela que só o tempo pode trazer: a experiência.

Se o próprio Oxalá pudesse nos dizer algo a seu respeito, talvez usasse estas palavras:

“Já nasci velho. Infância, juventude, não as tive. Vim predestinado e desde cedo assumi a missão e as responsabilidades do Pai. Sou Oxalá. Tranquilamente atravessei os continentes, pairando como névoa densa ou me fazendo sentir no último fio de esperança. E provei que acreditar vale a pena.

Sou Oxalá, sou pai sem nunca ter sido filho, já nasci velho, já nasci liderando, já nasci grande. Sou peregrino, sou migrante, sou refugiado. Sou prisioneiro de minhas convicções, de meus ideais. Nem que leve a eternidade, hei de provar que estava certo.

Ainda que seja na velhice, hei de ser reconhecido e hei de ascender ao topo. Porque sou Oxalá. Conduzo, permito e realizo. Meu comportamento é elevado, é digno, é irrepreensível. Porque sou Oxalá e rejeito tudo que é escuso. Porque sou Oxalá, sou exemplo. Porque sou ilibado, imaculado. Porque me cubro de brancura e não me misturo com coisa impura.

Sou criação, sou ausência. Sou tudo que ainda não veio. Carrego em minhas costas o mundo e me curvo sobre o meu cajado. Se me levantar, acabo com tudo. Porque sou Oxalá. Para o bem da humanidade, é melhor que eu esteja calmo.”

Em homenagem a Oxalá, sexta é dia de branco, dia de reverenciar o Grande Pai, de se vestir de altivez. A roupa branca é uma insígnia, traduz a honra de pertencer ao candomblé e o orgulho de celebrar o maior entre todos os orixás.

Na bela música “Toda Sexta-feira”, interpretada lindamente por Thalma de Freitas, uma tradução desse pertencimento:

Toda sexta-feira toda roupa é branca

Toda pele é preta

Todo mundo canta

Todo céu magenta

Toda sexta-feira todo canto é santo

E toda conta

Toda gota

Toda onda

Toda moça

Toda renda

Toda sexta-feira

Todo o mundo é baiano junto

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