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São Paulo e Rio de Janeiro, dois carnavais que contrastam

Uma cumpre o protocolo para agradar os jurados enquanto a outra faz carnaval com engajamento político e que cresce assustadoramente na pista

Viradouro, a escola campeã do carnaval 2020 com enredo ligado ao universo afro-religioso (Foto: Fernando Grilli / Riotur)
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Depois de assistir nos sambódromos do Anhembi e da Sapucaí aos desfiles das escolas de samba do grupo especial, vejo que algumas comparações são inevitáveis. Sempre considerei que as realidades das duas cidades interferiam no modo de fazer carnaval e por isso tentava analisar os espetáculos sem comparar e sem valorizar aspectos de um em detrimento do outro.

Contudo, o desenvolvimento do carnaval paulistano, nas ruas e na grandiosidade dos desfiles, veio acompanhado de mudanças estruturais cuja consequência mais imediata foi um crescente investimento tanto do poder público quanto da iniciativa privada, inclusive com captação de recursos pela Lei Rouanet.

Por outro lado, os desfiles do Rio de Janeiro atravessam uma crise sem precedentes, já que a prefeitura, comandada por um bispo neopentecostal, não repassou nenhuma verba às escolas de samba, que foram obrigadas a se virar e usar ainda mais a criatividade para construir seus enredos.

Em São Paulo, a gestão de Bruno Covas, já dando seus primeiros passos para uma possível reeleição, investiu muitos milhões na festa e promoveu uma reaproximação entre a prefeitura e as agremiações. Tendo Alê Youssef, figura famosa no carnaval de rua, como secretário de Cultura, a cidade tornou-se o destino mais procurado na folia de 2020.

Porém, o que se viu no Anhembi foi muito diferente do que se previa. Mesmo com a força da grana que ergue e destrói coisas belas, como diria Caetano Veloso, nada de novo nos desfiles. O espetáculo de São Paulo não é pensado para o público. Por força dos investimentos, as escolas preferiram os chamados enredos “chapa branca”, ou seja, aqueles que não contestam, não criticam e nem ficam pra história, como os que homenageiam cidades, estados ou países.

As escolas de samba de São Paulo, salvo raríssimas exceções, apresentam-se e concebem seus desfiles para os jurados, que se dedicam a fiscalizar se os itens das pastas que explicam cada quesito foram executados. Portanto, basta cumprir o protocolo. Nenhuma escola quer se arriscar, afinal, é melhor fazer o trivial certinho do que se colocar em perigo só pra conquistar o público.

O som do Anhembi convida o espectador a dormir ou ir embora. É horrível: baixo, com caixas voltadas somente para as pistas, que deixam de funcionar de repente ou são desligadas à medida que a escola ultrapassa os setores. Junte-se a isso o frio, a garoa, a dificuldade para comer algo ou ir ao banheiro e temos a descrição perfeita do “túmulo do samba”. Mesmo nos camarotes, que estão no nível da pista, quem não fica grudado na grade não tem a menor noção dos detalhes de chão, como evolução ou fantasias. Muitos vão à avenida, mas acabam assistindo aos desfiles pelos telões.

Claro que num lugar com milhares de pessoas, comer e ir ao banheiro vai ser sempre difícil, mas se o espetáculo vale a pena, as pessoas aguentam e relevam. O som da Marquês de Sapucaí é maravilhoso (e se alguém diz o contrário é porque não conhece o Anhembi). A bateria nem passou ou já passou e o povão samba. As paradinhas e bossas são identificadas nitidamente no Rio de Janeiro. Em São Paulo, mal se percebe a marcação do surdo.

Na folia paulistana, a Mocidade Alegre, com seu enredo sobre as Iyabás (Orixás femininas do candomblé) fez um desfile arrebatador e era dada por especialistas como a grande favorita, já que os erros da Gaviões da Fiel de Paulo Barros, em tese, tiravam suas chances de disputa. Quem ganhou, no entanto, foi a Águia de Ouro, com um desfile bonito, competente, correto, técnico, mas nem de longe com a ousadia de Gaviões ou Mocidade.

No Rio, era muito difícil apontar uma favorita. Desfiles impactantes, com engajamento político e competência técnica, belos sambas, baterias espetaculares, um verdadeiro show. Viradouro e Grande Rio, com temas diretamente ligados ao universo afro-religioso, disputaram até a última nota. Mocidade Independente de Padre Miguel e Beija-flor, com referências diretas a Exu em seus sambas, estiveram muito perto do campeonato. Salgueiro trouxe o palhaço negro Benjamin de Oliveira e a tão esperada Mangueira causou com a biografia de um Jesus que vem sendo esquecido por seus seguidores. Todas retornam nas campeãs, mas a Viradouro levou a melhor e vai festejar seu segundo campeonato.

São carnavais distintos, é óbvio, mas em se tratando de desfile de escolas de samba, São Paulo ainda tem muito que aprender. Nem a forte presença e influência de profissionais cariocas nas escolas paulistanas conseguiu modificar a estrutura do sambódromo ou dos desfiles, que muitas vezes lembram procissões ou paradas militares.

Os carros alegóricos de São Paulo são muito maiores que os cariocas. Um grande paradoxo: em São Paulo, os carros são enormes na concentração e pequenos para a dimensão do sambódromo. No Rio, tudo é pequeno na concentração, mas cresce assustadoramente na pista, principalmente pela forma como a televisão transmite. Isso significa que o espetáculo também é pensado para encantar quem assiste pela tevê. O posicionamento das câmeras, as torres, os equipamentos utilizados na Sapucaí deixaram há muito tempo para trás o amadorismo do Anhembi.

Enfim, embora a comparação seja inevitável, chego à conclusão de que são dois carnavais que não se comparam, porque o Rio de Janeiro é mestre e São Paulo segue aprendiz. A Sapucaí, mesmo sem a subvenção da prefeitura, continua sendo a “prima rica”, que todos os anos esnoba a “prima pobre” que só tem dinheiro.

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