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Santa Dulce dos pobres, pretos, desvalidos e desnutridos

A santidade e as graças de Irmã Dulce sempre testemunharam sua trajetória de dignidade e a nobreza de seu espírito

Santa Dulce dos Pobres (Foto: Divulgação / EBC)
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Numa linda manhã de domingo, a Bahia viu uma de suas filhas veneráveis ser canonizada. Aliás, a primeira mulher nascida no Brasil a se tornar santa. Aquela que criou uma rede de caridade e assistência aos mais pobres, cuja obra até hoje é referência no tratamento de doenças e outras mazelas sociais. Irmã Dulce ascendeu ao reino da glória e teve sua bondade e seus milagres reconhecidos pelo Papa Francisco no dia 13 de outubro de 2019, numa cerimônia que levou ao Vaticano o vice-presidente Hamilton Mourão, o governador Rui Costa, o prefeito ACM Neto e outras autoridades.

Ao invocar como intercessores os novos santos, o papa mais uma vez demonstrou sua preocupação com a retomada de uma igreja que considere os problemas sociais uma prioridade. Nesse sentido, a canonização de Irmã Dulce parece bastante emblemática. Se “a vida religiosa é um caminho de amor nas periferias existenciais do mundo”, como disse Francisco, Santa Dulce dos Pobres, que tão bem conhecia a cor retinta da pobreza em Salvador, é mártir da misericórdia e do desprendimento, senhora dos desvalidos e desnutridos, das criancinhas pretas que a rodeavam como os anjos que o céu rejeitou.

A pobreza tem cor e é uma instituição que promove santos e heróis na caridade de uma gente de bem que teme a Deus e prefere os gestos individuais de bondade à justiça solidária de um governo democrático, que promova igualdade e olhe para todos. É bom que os pobres existam. É bom que os negros continuem a existir como pobres. Do contrário, como seria a salvação dessa gente que no paternalismo de suas ações nos faz ver como naturais questões que deveriam ser resolvidas com a intervenção do Estado e não com os milagres e a abnegação de uma freira franzina?

A santidade e as graças de Irmã Dulce sempre testemunharam sua trajetória de dignidade e a nobreza de seu espírito. Sua visível fragilidade física não condizia com a força de sua atuação, com sua capacidade de reverter em benfeitorias o arrependimento daqueles que pagavam salários de fome, mas ostentavam sua caridade doando a obras assistenciais, salvando e alimentando os pobres. Uma santa que soube lançar sua autoridade como um peso nas costas dos poderosos que almejam o paraíso no reino de Deus e sustentam na terra o inferno da pobreza e da dor.

Ao som da sanfona do cearense Waldonys, ouviu-se a voz potente da cantora Margareth Menezes. Um hino à santa freira que agora exibe em sua imagem a auréola com a qual o Senhor consagra os que Lhe falam mais de perto. Essa imagem de Santa Dulce dos Pobres, a imagem da religiosa que suplantou suas dores pessoais e entregou sua vida ao próximo. Em seu colo, a criança negra, subnutrida e nua, a mais perfeita tradução da pobreza num País que esqueceu deliberadamente de promover sua outra metade, justamente a metade que o construiu com suor e sangue e segue representada na condição triste que a miséria impingiu.

Quem não haveria de reconhecer a santidade de Irmã Dulce? Que chefe de Estado poderia se furtar de um momento tão pleno de consagração de uma brasileira? Como não exaltar o legado do “Anjo Bom da Bahia”? Todas as deferências a essa santa mulher são justas e necessárias, não só por seu exemplo de abnegação e caridade, de amor ao próximo, mas, sobretudo, pela coragem de não se ajoelhar diante de um projeto de poder sectário, que propaga intolerância e ódio, que só favorece os que rezam pela mesma Bíblia.

Consolidada pelo Vaticano, Santa Dulce passa a ser apresentada como alguém que “desde a infância se destacou por uma grande sensibilidade para com os pobres e necessitados”. A menina, que perdeu a mãe ainda na infância e na juventude se entregou à vida religiosa, foi professora e desde a adolescência cumpriu sua vocação para ajudar os mais necessitados. Aos 13 anos, Irmã Dulce começou a acolher doentes e moradores de rua em sua casa, iniciando uma espécie de centro de atendimento informal que acabou conhecido como “a portaria de São Francisco”.

“Sua caridade era maternal, carinhosa”, informa o texto impresso no livreto da canonização. “A sua dedicação aos pobres tinha uma raiz sobrenatural e do Alto recebia forças e recursos para dar vida a uma maravilhosa atividade de serviços aos últimos.” O documento ainda afirma que, quando a freira morreu, já gozava de “grande fama de santidade”. Ressaltar essas qualidades expressa o caráter de uma mulher de autoridade, que com um telefonema ou um bilhete de próprio punho operava o grande milagre de mover as estruturas da injustiça social.

 

Sua formação como normalista, oficial de farmácia e auxiliar de serviço social certamente alimentava sua consciência na luta contra as desigualdades. As aulas de Geografia e História, a criação de um movimento operário cristão, tudo isso alinhava a ação de Irmã Dulce ao Evangelho e aos mais profundos valores cristãos atualmente negligenciados, especialmente os que reverenciam o bem comum e pregam o amor incondicional ao próximo.

Ao fundar a organização que até hoje assiste os desvalidos da periferia de Salvador, cuidando de todo tipo de doença e curando a fome, Irmã Dulce ampliou os horizontes do serviço social e médico, alcançando aquela população que o Estado deixou à margem, ao “deus dará”. Ela sabia que o remédio para as dores do mundo era outro e também gostava de artes, principalmente música. Em 1948, fundou o Cine Teatro Roma, palco de shows de grandes nomes da MPB, como Roberto Carlos e Raul Seixas, e criou outros cinemas em Salvador.

“Miséria é a falta de amor entre os homens”, dizia. Os milagres que Irmã Dulce realizou ao longo da vida inserem-na num alto posto de humanidade. Todas as forças divinas que movimentou reiteram a capacidade que as mulheres têm para transformar o mundo. A instituição filantrópica que fundou em Salvador no ano de 1959 é hoje um complexo composto de 17 núcleos, com uma gama de serviços gratuitos que vão de escola de ensino integral a hospital com tratamento de câncer.

Ao reconhecer a santidade e nobreza das ações de Irmã Dulce, o Prof. Fabio Mariano, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, ressalta que aclamá-la como mãe dos pobres seria uma forma de naturalizar a desigualdade e aplaudir a miséria. “A desigualdade promovida pelo Estado deve ser criticada, combatida, e não martirizada”, afirma. Entre os mais pobres estão os mais pretos. Rezar aos pés de uma santa que traz no colo uma criança negra desnutrida e não pensar no mal que se tem feito à metade da população deste País é o pecado recorrente dessa gente de bem que usa a caridade como barganha de salvação e acesso ao reino de Deus.

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