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República laica não tem nada a ver com Estado antirreligioso

A lei está acima dos valores religiosos e todos os brasileiros devem ser igualmente tratados como cidadãos, com os mesmos direitos

Crédito: Pixabay
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* Manifesto em defesa da Constituição Federal, da liberdade de crença e pelo fim da perseguição às religiões afro-brasileiras

O caráter laico da República Federativa do Brasil, previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, não significa que o Estado brasileiro deva ser antirreligioso, tanto que a própria Constituição assegura assistência religiosa nas instituições de internação coletiva, garante imunidade tributária aos templos de qualquer culto e confere efeitos civis ao casamento religioso, apenas para ficarmos nesses exemplos.

República laica não quer dizer, portanto, que o Estado deva ser contra as confissões religiosas, mas sim que este não se subordina nem se confunde com nenhuma religião. Significa que a lei está acima dos valores religiosos e ainda que todos os brasileiros, fiéis, crentes ou descrentes, devem ser igualmente tratados como cidadãos, com a mesma dignidade e os mesmos direitos.

A Constituição Federal, a Lei do Impeachment, a Lei de Improbidade Administrativa e o Código Penal, dentre outros, determinam que o agente-funcionário público tem a obrigação jurídica de defender o interesse público, da coletividade, não interesses ou sentimentos pessoais, de grupos religiosos ou quaisquer que sejam.

Favoritismos, predileções, predisposições e inclinações são critérios plenamente admissíveis na gestão privada, ao passo que, na gestão pública, o administrador está obrigatoriamente submetido ao princípio constitucional da impessoalidade.

A expressão latina res publica, república, significa literalmente “coisa do povo”, “coisa pública”, cuja gestão, até que se modifique a atual Constituição Federal, deve obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O princípio constitucional da impessoalidade impõe à administração a obrigação ética e jurídica de pautar-se pelo interesse público, previsto em lei, e tem o dever de tratar todos os brasileiros (e não somente a maioria) com equidade, sem discriminação injusta, sem animosidades pessoais ou movidas por interesses sectários, de grupos.

Neste contexto, configura crime de responsabilidade a afirmação feita por um embaixador brasileiro, em conferência internacional realizada na Hungria, no mês passado, segundo a qual “uma das mudanças conduzidas pelo governo Bolsonaro foi exatamente colocar a religião no processo de formulação de políticas no Brasil.”

Afirmou ainda o senhor embaixador que o Estado deve atuar para converter ateus e agnósticos.

A privatização do Estado por grupos religiosos afronta a Constituição Federal, viola a dignidade da pessoa humana, corrói a democracia, dissemina o descrédito nas instituições e pretende aniquilar direitos dos milhões de brasileiros que não professam religião alguma ou são filiados a confissões religiosas não-alinhadas à chamada tradição judaico-cristã.

A esse respeito, devemos lembrar que a Constituição Federal proíbe discriminação baseada em crença ou convicção filosófica (ateus e agnósticos), protege as manifestações culturais afro-brasileiras e prescreve a valorização da diversidade cultural e religiosa.

A rigor, a privatização de espaços públicos por facções religiosas nada tem de novidade, haja vista que há décadas professores, diretores e funcionários de instituições educacionais tratam escolas públicas como se fossem puxadinhos de templos religiosos, humilham, constrangem e ofendem crianças de 8, 9, 10 anos por serem ateias ou fiéis das religiões afro-brasileiras, apenas para ficarmos nesses exemplos.

Segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), os programas religiosos totalizam atualmente 21% de todo o conteúdo da TV aberta no Brasil. Isso, sem falarmos no rádio. No caso da TV aberta, trata-se de conteúdo, em termos de volume, superior ao de telenovelas, noticiários, entretenimento etc. Ainda que se possa discutir se os meios de comunicação, que constituem um serviço público, devam ser monopolizados por confissões religiosas, o problema fundamental é que parte considerável desses programas extrapola o proselitismo e degenera para o discurso de ódio, ofensivo, ultrajante, que incita e induz à violência.

 

Desemprego, enfermidades, miséria, desagregação familiar, drogas, absolutamente todos os males são atribuídos às religiões afro-brasileiras. O resultado dessa propaganda sistemática e cotidiana, iniciada há décadas, pode ser comprovado pelas estatísticas que demonstram o crescimento da violência motivada por intolerância religiosa.

Segundo dados do Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de janeiro a novembro de 2018, houve, em relação ao ano anterior, aumento de 47% nas denúncias de casos de intolerância contra religiões de matrizes africanas. Além disso, em 2014, elas correspondiam a 15% do total de denúncias. Hoje, representam 59% do número total de reclamações.

Levantamento similar, realizado pelo jornal Folha de S. Paulo, revela que a intolerância religiosa também cresceu na capital paulistana no primeiro quadrimestre deste ano. A Polícia Civil recebeu o dobro de notificações de crimes dessa natureza de janeiro a abril, em relação ao mesmo período do ano passado. São cinco boletins de ocorrência por dia, em média, sem que ninguém seja responsabilizado.

Neste cenário, impõe-se o fortalecimento da luta para que os ataques aos templos afro-religiosos por grupos armados, que ameaçam, agridem e constrangem sacerdotes e sacerdotisas a destruir artefatos religiosos — tais cenas são gravadas e difundidas pela internet com o visível propósito de intimidar os fiéis — sejam capitulados como crime ambiental, dano ao patrimônio cultural, não como mero crime de dano ao patrimônio privado, forma pela qual são tratados costumeiramente.

Devemos lembrar ainda que o crime de perseguição religiosa está expressamente capitulado na Lei de Crimes contra a Segurança Nacional.

Por último, mas não em último, vale anotar que, ao reconhecer e proteger o pluralismo cultural e religioso, a Constituição Federal salvaguarda um dos maiores patrimônios da sociedade brasileira, consistente na rica geografia de identidades culturais, étnicas e religiosas que a caracterizam, ilustrada pelas dezenas de mesquitas, sinagogas, catedrais, templos budistas, templos afro-brasileiros dentre outros espalhados pelo país.

O país também abriga, é verdade, ativas organizações de brasileiros ateus, aos quais a Constituição brasileira assegura a liberdade de não crer e de serem respeitados em sua identidade e dignidade.

A preservação desse patrimônio requer do Poder Público respostas eficazes às crescentes denúncias de intolerância religiosa, como também uma intervenção preventiva, capaz de fomentar uma cultura de respeito recíproco, convivência harmoniosa e paz entre todos os cidadãos, crentes ou descrentes.

Trata-se de uma obrigação ética e jurídica imposta ao Estado — mas também à sociedade e aos indivíduos —, uma vez que a tolerância se afigura como princípio republicano previsto em tratados internacionais, leis ordinárias e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

A tolerância, conforme definido em inúmeros documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), é o respeito, a aceitação e o apreço à riqueza da diversidade das culturas e dos diferentes modos de expressão da condição humana.

Tolerância é harmonia na diferença, porquanto repudia o ódio em quaisquer de suas modalidades, seja religioso, racial ou ideológico.

A história da humanidade é repleta de tragédias decorrentes da intransigência e do fundamentalismo religioso, a exemplo do nazismo, guerras, terrorismo, genocídios, massacres, estupros em massa e outras atrocidades do passado e do presente.

Trata-se de um esforço de mobilização em defesa da paz e da tolerância como valor republicano e como sustentáculo da democracia e da cidadania.

Impõe-se uma intervenção preventiva, pedagógica e educativa, destinada a dissociar diferença de inferioridade e valorizar a convivência harmoniosa entre brasileiros de todas as convicções e crenças.

O objetivo último, para o qual todas e todos estão convidados, é preservar e cultivar a tolerância como instrumento de afirmação da dignidade humana e proteção da paz social.

***

Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (ABPE) é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 28 de agosto de 2004. Dedica-se a resgatar no Brasil um Espiritismo pedagógico, científico, filosófico, universalista e plural, seguindo a proposta do educador Hippolyte Léon. É mantenedora da Universidade Livre Pampédia – uma proposta de educação alternativa.

Associação Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz (AbrePaz), entidade cultural, educacional, científica e religiosa, sem fins lucrativos, fundada sobre os princípios de democracia, transparência, pluralismo de ideias, inclusividade, diversidade e não-violência; formada por cerca de 130 membros.

Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Sociais e Humanas (Aephus), organização científica que reúne pesquisadores sobre o espiritismo e o espiritualismo brasileiro.

Carla Pavão, jornalista e espírita, pós-graduada em Meio Ambiente pela FGV, em Psicologia para não psicólogos aplicada ao contexto de trabalho pelo ISPA de Portugal, aluna de pedagogia espírita pela Universidade Livre Pampédia, entrevistadora/animadora do Canal Paz e Bem e membro do Cejus, Abrepaz, Filosofia em Movimento e comitê inter-religioso Lula Livre.

Coletivo amanhã há de ser outro dia, agrupamento de companheiras e companheiros que buscam uma intervenção na realidade social fazendo a resistência ativa, lutando pela democracia e denunciando as injustiças, a violência e o autoritarismo, reúne 57 pessoas, entre professores universitários, artistas, intelectuais e militantes de diferentes causas sociais.

Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social (Cejus), coletivo criado há dois anos para estudos das obras espíritas pela ótica progressista, que reúne cerca de 180 pessoas.

Coletivo Girassóis, espíritas pelo Bem Comum, que existe há 15 meses e reúne cerca de 200 espíritas.

Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, composto pela Aliança de Batistas do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida e Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia, o CONIC nasceu no ano de 1982, em Porto Alegre (RS).

Danilo Molina é jornalista e zelador espiritual do Centro de Umbanda Cavaleiros de Ogum. Foi assessor especial da Casa Civil da Presidência da República e assessor do Ministério da Educação. Possui pós-graduação em Comunicação Pública.

Deborah Duprat é jurista e procuradora federal dos Direitos do Cidadão. Foi vice-procuradora-geral da República de 2009 a 2013, tendo ocupado interinamente o cargo de procuradora-geral em 2009.

Dora Incontri, coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.

Dr. Antônio Basílio Filho é pós-graduado pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, advogado das religiões afro-brasileiras no STF (Supremo Tribunal Federal).

Dr. Hédio Silva Jr. é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, Coordenador-Executivo do IDAFRO – Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras.

Dr. Jáder Freire de Macedo Júnior é ex-presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-SP, conferencista, advogado das religiões afro-brasileiras no STF (Supremo Tribunal Federal).

Eduardo Brasileiro, membro da IPDM (Igreja Povo de Deus em Movimento) e participante do 3º Encontro Internacional de Jovens animado pelo Papa Francisco e organizado pela Fundação de Direito Pontifício Scholas Ocurrente.

Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, atua na representação das casas de Matrizes Africanas e Afro-brasileiras.

Franklin Felix, um dos idealizadores do Movimento de Espíritas pelos Direitos Humanos, colunista do blog Diálogos da Fé na CartaCapital.

Grupo de Filosofia em Movimento, coletivo que aborda especialmente filosofia e corpo, composto por pessoas das áreas de filosofia e humanidades, responsável pelo projeto Barraco Filosófico.

Makota Célia Gonçalves Souza é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB).

Mauro Lopes, fundador do canal Paz e Bem e autor-organizador do livro “Lula e a Espiritualidade: oração, meditação e militância”.

Mayrla Silva é coordenadora geral do Coletivo Cultural ValeJovem, que representa a juventude do Vale do Amanhecer.

Movimento de Espíritas pelos Direitos Humanos, grupo de espíritas progressistas e em sua maioria militantes pelos direitos humanos espalhados pelo Brasil, que reúne cerca de 400 pessoas em todo Brasil.

P. Ariovaldo Ramos, fundador da Frente Evangélicos pelo Estado de Direito.

Pa. Romi Márcia Bencke é secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, integrante da Coordenação do Fórum Ecumênico ACT-Brasil e presidente da Agência Ecumênica de Comunicação.

Pe. Paulo Sério Bezerra da diocese de São Miguel Paulista, coletivo IPDM – Igreja Povo de Deus em Movimento.

Taata kwa Nkisi Katuvanjesi – Walmir Damasceno, coordenador do ILABANTU Instituto Latino Americano de Tradições Bantu e Representante para América Latina do Centro Internacional das Civilizações Bantu CICIBA – dirigente tradicional do Terreiro de Candomblé Nzo Tumbansi.

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