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Quem merece morrer?

Não se trata de um louco, de um insano. Bolsonaro sabe o que faz e a que interesses serve quando se porta como um déspota irresponsável

Bolsonaro faz pronunciamento sobre o coronavírus em rede nacional na noite de 24 de março (Foto: Isac Nóbrega / PR)
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Ori buru kosi orisá, ou seja, cabeça ruim não tem orixá. Não cabe orixá algum na cabeça de um perverso e, pelo que se vê, praticar crueldades deve ser a maior vocação desse presidente. Orixá não é santo e nossas tradições não costumam fazer juízo moral de quem quer que seja. Essa dicotomia excludente entre bem e mal não nos pertence, mas isso não significa que não saibamos diferenciar o certo do errado, muito menos que não estejamos submetidos a princípios éticos que estabelecem nossa conduta e nos permitem avaliar as ações de cada indivíduo.

Ao demonstrar, de forma deliberada e criminosa, o tamanho de sua ignorância em relação aos riscos e impactos que o coronavírus pode causar no Brasil, Jair Bolsonaro vai além de um simples desprezo à gravidade de uma pandemia que já assola e provoca colapso nos sistemas de saúde e funerário de Itália e Espanha e ameaça ser ainda mais devastador nos Estados Unidos. Seu governo assiste à transmissão da covid-19 desautorizando governadores, prefeitos, médicos, organismos internacionais e seus próprios técnicos e ministros. Segue na contramão de todas as orientações da OMS e vai repetindo os mesmos erros que tornaram a situação nesses países incontrolável.

Não se trata de um louco, de um insano. Ele sabe o que faz e a que interesses serve quando se porta como um déspota irresponsável, gritando suas frases de efeito para uma plateia alienada que de olhos vendados ainda segue as orientações do seu capitão em direção ao abismo. O obscurantismo que tomou conta do Brasil nesses últimos anos encontra na figura insensata do presidente sua síntese e tradução. Para além da comprovada incompetência, há um desvio de caráter e uma vocação para a improbidade. Definitivamente, não temos um líder capaz de nos conduzir com um mínimo de segurança e tranquilidade diante da tragédia que se aproxima.

Quem vai morrer? Quais serão as consequências sociais e econômicas? E os danos psicológicos do confinamento, do luto, da indiferença? O primeiro caso registrado veio da Itália, muito provavelmente no conforto da classe executiva. Tratou-se e curou-se no Albert Einstein. No Leblon, a patroa infectada não abre mão da empregada, que contrai o vírus e morre. Ricos e pobres estão morrendo, é verdade, mas quem pode avaliar o impacto dessa doença nas comunidades, nas favelas, nas ruas e marquises que servem de abrigo à população mais vulnerável? É só o começo, e para o presidente pode ser o começo do fim.

A eficiência do Sistema Único de Saúde diante de uma epidemia vai ser testada, mas pode revelar-se ainda o colapso da assistência médica no Brasil, sobretudo dos planos de saúde “meia-boca” que só emprestam à morte um sudário mais digno. A construção social da doença ensina o óbvio: vai morrer gente rica, mas os pobres vão morrer muito mais. A facilidade com que o vírus se dissemina põe por terra o conceito de “grupo de risco”. Todos podem contrair, mas o grau de letalidade entre idosos é maior e, como velhos não contribuem ativamente para a economia, na lógica daquele que nos governa, o que seriam algumas vidas diante do risco de quebrar o País e gerar desemprego?

Basta deixar os velhos em casa e voltar à normalidade. Quem for jovem ou tiver histórico de atleta nada sofrerá. Talvez uma “gripezinha”, um “resfriadinho”. Vamos mandar as crianças pra escola, voltar aos escritórios, lotar o transporte público. Vida normal. Afinal, o que são cinco ou sete mil mortes, em sua maioria de idosos, diante da ameaça ao lucro do empresariado?

A pergunta que faço é: quem merece morrer? Ao genocídio de negros e pobres, dos aposentados improdutivos que oneram a Previdência, ao feminicídio crescente, aos assassinatos por trans e homofobia soma-se o coronavírus. Sabemos que na disputa por um respirador, na escolha de quem vive ou morre, a necropolítica seguirá a serviço do capitalismo selvagem e sujo, descartando as “peças” que a falta de saneamento e a urina dos ratos de esgoto não deram conta de eliminar. Na cabeça do presidente, pobre não morre fácil assim. E se tiver que morrer, paciência.

Como bem pontuou a médica Júlia Rocha: “Qual o problema de morrerem uns mais velhos? Qual o problema de morrerem uns deficientes físicos? Uns gays? Uns deficientes visuais, uns auditivos? Qual o problema de morrerem uns favelados, uns pretos, uns indígenas, uns pobres?” E conclui de forma contundente: “Isso não te lembra nada? O problema é que isso é a construção de um grande campo de concentração.”

A guerra que deveria estar sendo travada contra a covid-19 deu lugar a uma disputa antecipada pela faixa presidencial. Ao contrariar as determinações dos governadores, especialmente os de São Paulo e Rio de Janeiro, e recomendar que a população volte à rotina, o presidente, num pronunciamento infeliz que gerou críticas no mundo inteiro, tenta uma “cartada de mestre” que, na sua cabeça com pouca ou nenhuma cognição, isolaria seus adversários. Peão desastroso no tabuleiro do jogo político, ignora a confluência de forças que o levou ao poder e se torna refém da própria vaidade e arrogância.

Na contramão de todas as recomendações internacionais e de seu próprio ministério, sugere que as pessoas retornem ao trabalho, que as escolas e universidades retomem as aulas e minimiza a gravidade dessa pandemia, colocando em risco toda a população e botando em xeque o sistema de saúde público e privado.

Ele não está sozinho, não é insano e sabe perfeitamente das graves consequências. Ele disse que o “brasileiro se joga no esgoto e não pega nada”. Ele tem um projeto nefasto e não importa quantos pobres, pretos, idosos, gays, travestis, mulheres, deficientes tenham que morrer para que se satisfaça a sanha do capital. Ele fez do coronavírus seu cavalo e com o sabre do descaso vai ceifando as vidas que valem menos. Ele não é louco, ele é desumano.

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