Diálogos da Fé

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Quando a Torre de Babel é aqui

Apesar da crescente intolerância, é possível vencer a linguagem única da violência, em prol da diversidade. O “esfihaço” para Mohamed Ali é uma prova

Depois de conhecer o ódio, Mohamed Ali foi apresentado à solidariedade brasileira
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Tempos instigantes estes. Quem diria que em pleno século XXI testemunharíamos a realização de uma marcha nos Estados Unidos (Charlottesville) por supremacia branca, exaltação do nazismo, contra negros, judeus, imigrantes e LGBTIs? É, nitidamente, o resultado de processos de cultivo e expressão aberta de ódio entre indivíduos e grupos que não são exclusividade daquele país.

No Brasil, tornou-se comum a expressão pública de racismo, machismo, xenofobia e homofobia. São correntes também as execuções sumárias por justiceiros anônimos e por agentes do Estado (estimuladas até nas mídias), que afetam fundamentalmente a população empobrecida e negra. A intolerância se potencializa em diversos níveis, sob a capa de “liberdade de expressão”, a ponto de emergirem personalidades do cenário político e cultural como representantes de quem defende estas expressões abertas de ódio.

Como consequência, temos a descrença nas instituições, o rebaixamento da autoestima social, a desqualificação das religiões (com destaque para igrejas que colecionam desconfianças), dos governantes e de parlamentares como representantes do povo. Entre as frases mais pronunciadas e disseminadas neste nosso presente estão: “É assim mesmo… não tem jeito…” ou “o ser humano não deu certo…”

Houve, no entanto, outro fato no mesmo fim de semana da marcha de Charlottesville. Mohamed Ali, imigrante sírio, havia sido vítima de xenofobia no início de agosto, no Rio de Janeiro. Ele vendia salgados árabes em uma calçada em Copacabana quando foi agredido verbalmente por um vendedor ambulante, que, com um pedaço de pau, chamava-o de “homem-bomba” e exigia que ele saísse do País.

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A agressão foi filmada e divulgada nas mídias sociais e na mídia. Guilherme Benedictis, que promove feiras de comida de rua (food trucks), se sensibilizou com o ocorrido e, apoiado por outros cidadãos, convocou um “esfihaço” pelas mídias sociais em solidariedade ao sírio. A resposta foi tão positiva que Mohamed teve de recrutar quatro amigos para atender a tantos clientes. O evento reuniu gente como o policial militar Roberto de Souza, que saiu de sua casa em Bangu, na Zona Oeste da cidade, a cerca de 50 quilômetros de Copacabana, para participar do “esfihaço”. “Eu assisti o vídeo da situação constrangedora que o Mohamed passou e vim prestar meu apoio”, afirmou o policial.

Esta, uma experiência de sensibilidade e solidariedade, em meio a tantas, não seria uma porção da possibilidade de se humanizar um mundo desumano e se promover a paz com justiça acima de tudo? Não seria o “tem jeito, sim!”?

Tudo isso me lembra da conhecida história da Bíblia, a Torre de Babel, uma narrativa sobre o início da vida humana em sociedade. Um grupo desejou se tornar célebre e poderoso e planejou a construção de uma cidade e de uma torre que chegaria aos céus, concentrando-se naquele lugar para dominar sobre outros.

Veja cenas postadas pelo Canal K do “esfihaço” a favor do sírio Mohamed Ali:

Ele se colocaria na altura do Deus Criador e controlaria outros grupos humanos. Quem chama a atenção para esta leitura é o pastor evangélico e renomado teólogo luterano Milton Schwantes, falecido em 2012. Ele ensinou que o projeto do Criador, baseado em comunhão e harmonia em meio às diferenças, havia sido corrompido. Isso se torna evidente quando a narrativa revela o contexto do plano do grupo: “Em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar”.  Uma unidade imposta pelo projeto de dominação e concentração: uma única e uniforme maneira de falar, a linguagem que torna possível o poder de uns sobre outros.

O texto narra que Deus então disse: “‘Desçamos e confundamos ali a linguagem desta cidade, para que um não entenda a linguagem de outro”. Assim, “o Senhor dispersou o grupo pela superfície da terra e cessou de edificar a cidade e foi dado a ela o nome Babel”. Com isso, Deus dispersou e confundiu a ideia de linguagem única, do controle e da dominação, e garantiu a diversidade. É assim que se realiza o projeto do Criador para a humanidade e não na língua única dos que se colocam na altura de Deus e contribuem para desumanizar o mundo.

Esta história me estimula a buscar aquela experiência divina em Babel hoje. Superar a linguagem única da violência, da intolerância, do ódio, que gera pessimismo e imobiliza. Aquela linguagem que serve para conservar a lógica vigente de injustiça e falta de paz. Se inspirar na ação do Criador em Babel significa dar voz aos silenciados, valor às diferenças, potencializar as ações e as palavras que humanizam.

Desafio para quem protagoniza discursos sociais, políticos e culturais (e aqui temos as religiões e as mídias): promovam uma nova forma de falar e ouvir.  Quem sabe assim o testemunho de gente como aqueles que organizaram e participaram do “esfihaço” em Copacabana, sensíveis às práticas inumanas de ódio, possa aparecer, numa primeira página, numa capa ou com destaque numa tela, para contagiar outros humanos?

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