Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Quais os limites da religião nas eleições em um Estado laico?

Não se pode desenvolver políticas públicas a partir de determinadas crenças ou preceitos de fé

Foto: iStock
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O que o (ser humano) semear, isso mesmo colherá” (Gálatas, 6:7)

Vivemos dias tristes para a frágil democracia brasileira e isso, naturalmente, tem refletido nas relações humanas. Eleições marcadas por mentiras, simulações, perseguições, ameaças, escancara as rupturas cívicas, éticas e morais que estamos vivendo.

Enquanto no Brasil foi dada a largada para a campanha dos/as postulantes aos cargos de prefeitos/as, vice-prefeitos/as e vereadores/as nas eleições municipais de 2020, talvez a mais diversa dos nossos tempos, nos Estados Unidos a disputa se dá para a presidência (com reflexos no mundo todo). Na Bolívia, nossos irmãos latino-americanos que, assim como nós brasileiros/as, estão sofrendo os reflexos de um golpe de estado que depôs o presidente legitimamente eleito Evo Morales, também terão a oportunidade de decidir seu futuro presidente.

Tanto no Brasil, como nos Estados Unidos e na Bolívia, as forças religiosas fundamentalistas estão consolidadas como uma força política com a qual todos os partidos precisam dialogar e negociar.

Para André Mendonça, pesquisador da ESPM, “o peso da religião deve ser sentido com mais força sobre as Câmaras de Vereadores/as com o passar dos anos. A tendência é que haja cada vez mais candidatos/as, principalmente no Poder Legislativo, com algum tipo de filiação religiosa e que agregam esse valor da filiação às suas candidaturas”.

Em 2010, o IBGE constatou que mais de 90% da população brasileira declarou ter alguma religião. Talvez isso explique por que em época de eleição, candidatos e candidatas vão em busca dos apoios de lideranças religiosos e votos dos fiéis.

Mas quais os limites, em um estado laico, das religiões no processo eleitoral? Líderes religiosos podem exercer o “voto de cajado”? As lideranças religiosas podem usar a sua influência e “poder” para interferir e induzir os votos das comunidades de fé? A religião está na eleição, mas pode tudo? A resposta para todas as questões anteriores é não!

Não podemos confundir, em hipótese alguma, “a reação do oprimido com a violência do opressor”

Atualmente, a legislação eleitoral prevê três tipos de abuso de poder que podem levar à perda do mandato: o político, o econômico e o uso indevido dos meios de comunicação.

Sobre a configuração de abuso religioso passível de punição, a suprema corte brasileira (STF) rejeitou a tese defendida pelo ministro Edson Fachin para que o abuso de poder religioso nas eleições passasse a ser entendido como uma das hipóteses que poderiam levar à perda do mandato, mas isso não significa que lideranças religiosas terão imunidade ao pedir votos. 

Em tempos de polarização, é preciso tomar partido, descer do muro, sair do armário e se posicionar contra todo tipo de intolerância e violência. Seja contra quem for.

Mas não podemos confundir, em hipótese alguma, “a reação do oprimido com a violência do opressor”, como afirmou o defensor dos direitos dos afro-americanos, Malcolm X. Como espírita, defendo a laicidade do estado e eleições livres de “voto de cajado”.

No entanto, não adianta nivelarmos por baixo e acharmos que todos/as os religiosos e religiosas são conservadores/as e mesmo que isso fosse verdade, representantes legitimamente eleitos devem governar para todas as pessoas (de fé ou não), respeitando, evidentemente, a laicidade do estado.

Como repetia Allan Kardec, em obras póstumas: “Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras constituem o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação”.

Candidatura de líderes religiosos

Eu já tinha contado essa história em um artigo anterior, mas como novamente estamos em um período eleitoral marcado pela forte pressão de lideranças religiosas, inclusive espíritas, que agora criaram uma frente de espíritas (de direita) na política, penso que vale a pena recordar.

Na eleição passada em que o atual presidente, infelizmente, saiu vitorioso, fui incluído em um grupo de WhatsApp intitulado “Espíritas na política”. Consegui permanecer por cinco dias até ser expulso. Eram cerca de cem integrantes, com idades variadas, mas a maioria estava acima de 50 anos. Embora as mulheres fossem maioria nesse grupo, eram os homens os que mais participavam. Além disso, quase a totalidade do grupo declarava-se “apolítico/a”, o que não era verdade.

O grupo foi criado com o pretexto de debater candidaturas espíritas para cargos políticos, e era composto desde apoiadores da ditadura, armamentistas, militaristas, conservadores até – em menor quantidade, pois eram expulsos – progressistas e gente de esquerda, como era meu caso.

Nesse grupo identifiquei três tipos de espíritas: os de esquerda e/ou progressistas (didaticamente, e às vezes contundentemente, contrários a qualquer postura ou candidatos/as que fomentem violência, ataquem os direitos humanos e desrespeitem a democracia), os de centro – e infelizmente não é um trocadilho – (mais neutros e pendendo, quase que sempre, para a defesa de ideias conservadoras e reacionárias) e os de extrema-direita (esses últimos, impossíveis de estabelecer qualquer tipo de debate, pois não há abertura, respeito, reciprocidade e afeto).

Eram os representantes dessa última categoria que, diante de qualquer debate e na impossibilidade de argumentação, atacavam com frases como: “Você não é espírita”, “você não sabe ler”, “temos que descer até onde esses ignorantes estão”.

Há princípios religiosos que podem orientar a vida pública, mas aos religiosos cabe sempre lembrar que o Estado brasileiro é laico

Lucas, o Apóstolo, diz que tudo que recebemos vem a partir do nosso ato de dar: “Dai e dar-se-vos-á” (6:38)“. Acontece que nós não somos eles e não podemos nos alegrar com a barbárie e com o sofrimento, sob o risco da espiral do ódio, um dia, nos sugar para seu epicentro. A política pode ser desenvolvida por gente religiosa e não religiosa.

Há princípios religiosos que podem orientar a vida pública, mas aos religiosos cabe sempre lembrar que o Estado brasileiro é laico e que, portanto, não se pode desenvolver políticas públicas a partir de determinadas crenças ou preceitos de fé, sob o risco de deixar de fora aqueles que não comungam das mesmas convicções.

Ainda que o espiritismo não faça nenhuma acepção de indivíduos ou pregue qualquer tipo de discriminação – aliás, nenhuma religião faz, são as suas interpretações, feitas por gente, que gera exclusão e preconceito –, muitos trabalhadores e frequentadores de casas espíritas ainda são rotulados e excluídos por suas ideologias políticas, por sua condição socioeconômica e por questões de sexualidade e/ou gênero.

Percebam que temos muito trabalho pela frente, dentro e fora do movimento espírita: disputando narrativas, denunciando abusos cometidos por representantes espíritas, eliminando velhos paradigmas, construindo pontes em vez de muros, ensinando, didaticamente, conceitos de bem viver e justiça social e, sobretudo, resgatando os preceitos de amor e diálogo de Kardec, esquecidos pelos pseudo-médiuns midiáticos, pelos dirigentes fanáticos e pelos expositores ensimesmados.

Como disse o pastor Martin Luther King, no livro “Os Grandes Líderes”: “Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não o fazer. Não posso ficar no meio de todas essas maldades sem tomar uma atitude”.

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