Diálogos da Fé

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Precisamos falar de gênero nas igrejas

A Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano reconhece as violências sofridas e os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTQI+

Foto: SatyaPrem/Creative Commons/Pixabay Foto: SatyaPrem / Creative Commons / Pixabay
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Pela primeira vez, a Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano reconhece as violências sofridas e os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTQI+ em nosso País e em nossas igrejas. Entretanto, a inclusão dessa parcela da população no diálogo fraterno e no compromisso de amor que são tema desta CFE foi recebida com grande hostilidade.

Aliado ao alerta contra o feminicídio e demais violências sofridas por mulheres em uma sociedade profundamente machista e misógina como a nossa, o clamor por justiça e igualdade para as pessoas LGBTQI+ foi alvo de acusações, por setores das igrejas, de promoção de pautas “de esquerda” e defesa da ficção intitulada “ideologia de gênero”.

Vale lembrar a repercussão, no início de fevereiro deste ano, de um vídeo em que o arcebispo de uma capital do Nordeste, participando de festividade em uma paróquia, se recusou a ser entrevistado por um jovem agente da Pastoral da Comunicação.

A disseminação do vídeo nas redes sociais suscitou intensa exposição para o rapaz, cuja orientação sexual e expressão de gênero foram debatidas e ridicularizadas em praça pública.

Desconheço qual seja sua orientação sexual – que, a rigor, não vem ao caso. O fato é que muitos atribuíram a recusa do arcebispo à suspeita de que o rapaz seria homossexual, pelo fato de ele parecer, aos seus olhos, “afeminado”. E não foram poucos os que, supondo ser essa a razão da recusa do arcebispo, não só lhe deram razão como debocharam do jovem.

Foi uma situação violenta e abusiva não só para o próprio rapaz, mas para todas as pessoas LGBTQI+ cristãs, bem como para todas aquelas e aqueles que, mesmo sendo pessoas cisgênero e heterossexuais, de algum modo se afastam dos estereótipos de gênero e se tornam, por isso, alvos de chacota e agressão em nossas igrejas.

Ocorrida pouco antes da deflagração da controvérsia em torno da CFE 2021, a situação envolvendo o arcebispo e o jovem agente da Pastoral da Comunicação, infelizmente, está longe de ser um caso isolado em nossas igrejas. Os intensos ataques sofridos pela CFE 2021 evidenciam os danos devastadores e os graves perigos decorrentes da falta de um diálogo franco e de um debate sério e honesto nos ambientes cristãos, e especialmente católicos romanos, de questões relacionadas a gênero e sexualidade.

O mesmo pode ser dito sobre a escolha de uma mulher, a pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do CONIC, para alvo preferencial de tantos ataques virulentos, bem como a falta de iniciativa por parte da comunidade cristã em geral no sentido de posicionar-se com firmeza equivalente em sua defesa. Tamanha hostilidade, de um lado, e tanta tibieza, do outro, só confirmam a urgente necessidade de um diálogo e debate que abram em nossas igrejas espaços para a efetiva escuta, acolhimento, partilha e aprendizado com as experiências das pessoas LGBTQI+ e das mulheres.

A controvérsia suscitada este ano em torno da CFE remete inevitavelmente às experiências de tantas pessoas cristãs – pessoas que em geral foram criadas e socializadas em ambientes cristãos; pessoas ativamente engajadas em suas comunidades de fé; pessoas cujas famílias, amigos e amigas são cristãos; pessoas cuja experiência de fé, cuja espiritualidade e cujo contato com o sagrado se expressam e encontram sentido no cristianismo – tantas pessoas cristãs que, em algum momento de suas vidas se entendem e passam a se identificar como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou qualquer outra identidade à margem da norma cis-heterocentrada.

Essas pessoas tendem a ter sua afetividade e sexualidade estigmatizadas e, por isso mesmo,  silenciadas; ou reveladas sob o risco de isolamento, exclusão e exílio da sua comunidade de fé.

Entretanto, nem por isso deixamos de ser cristãs. É com alegria que podemos dizer que a fé de muitas e muitos de nós em Cristo e em Sua Igreja se mantém viva e forte. Resistimos em Cristo e nas igrejas, a despeito da violência, da perseguição e do exílio; e permanecemos em comunhão, colocando nossas dádivas a serviço da construção do Reino.

Eu e minhas irmãs e irmãos LGBTI+ há pelo menos cinco décadas nos organizamos em coletivos leigos no interior de igrejas cristãs em todo o mundo.

No Brasil, somos uma multidão, atuando por meio de organizações como a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, que integra a Rede Global de Católicos do Arco-Íris (Global Network of Rainbow Catholics, GNRC); o Evangélicxs – Juntos pela Diversidade; o Inclusão Luterana; o Inclusão Metodista; e tantos movimentos, igrejas e irmãs e irmãos de fé que são nossos aliados e caminham conosco.

Trabalhamos para construir uma Igreja empenhada no seguimento de Cristo. Uma Igreja que seja, nesta vida e nesta Terra, sinal da Boa Nova do amor de Deus. Uma Igreja que, como tal, possa colaborar na construção do Reino de Deus para todas as pessoas – onde haja justiça e lugar para todas e todos nós, filhas e filhos amados. Somos herdeiras e herdeiros do Deus que conhecemos, que é Pai e Mãe de Amor e está gravado em cada fibra do nosso ser – o Deus que nos conhece no mais íntimo de nosso ser, e nos guarda na palma de Sua mão.

Seguimos na experiência da Ruah Santa de Deus que sopra em nossos passos e mantém acesa nossa esperança, alimenta nossa fé e nos anima na jornada.

Nossas vidas e nossos corpos dão testemunho da mensagem que ouvimos e guardamos no sacrário de nossos corações: nem a morte, nem as trevas, nem a mentira terão jamais a última palavra. Nos amores e nas alegrias que encontramos nesta vida, nos laços de afeto e amizade que nos unem, no prazer dos nossos corpos e na graça de nossas vidas encontramos e somos continuamente lembrados da verdade: somos filhas e filhos do Deus da Vida, Emanuel, que caminha conosco, e como tais Sua Igreja é nossa herança legítima.

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