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Precisa-se de um Beato evangélico

O pastor Joaquim Beato deixou marcas como cristão defensor da igualdade racial, da superação da intolerância e do diálogo ecumênico

O pastor Joaquim Beato (Foto: Reprodução feita a partir do documentário "O Sonho Ecumênico")
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Vivemos um clima social e político marcado por retrocessos e desesperança. Cada semana que passa é marcada por notícias que trazem desalento: proposta de congelamento do salário mínimo, taxação em cima de desempregados, trabalho obrigatório aos domingos, desmonte dos serviços públicos, projeto de repressão na cidade e no campo com autorização à polícia e forças armadas para matar quem se opor “à lei e à ordem” (repressão a quem protestar contra o que está sendo feito e o que não está) e ameaças de implantação de um “AI-5” (censura, fechamento das instituições democráticas e perseguição violenta a opositores). Para falar apenas das situações impostas mais recentemente.

O que este quadro diz é que o governo que assumiu o Brasil neste 2019 tem disposição para criar insatisfações e tensões entre a massa da população (claro, não entre os privilegiados que se beneficiam com as decisões encaminhadas). Ao invés de se investir na paz e na distensão, age-se justamente para promover o contrário. E tudo isto com o apoio de grupos religiosos, que renegam suas bases confessionais enraizadas na paz, na coexistência, na vida plena para todos.

Neste contexto precisamos da memória. Sim, a memória que faz reviver um passado que não está morto mas que pode ser trazido à tona para iluminar o presente e ajudar a construir o futuro. Como disse o profeta Jeremias, segundo a Bíblia cristã: “Quero trazer à memória aquilo o que me pode dar esperança” (Lamentações 3.21). E o profeta estava vivendo um tempo de desalento muito parecido com o que vivemos no Brasil de hoje, com a destruição violenta do seu país, a dominação estrangeira e muita injustiça.

Nestes dias de novembro, ainda sob o clima do Dia da Consciência Negra, importa trazer à memória um dos líderes evangélicos negros que empenham a vida pela paz com justiça: Joaquim Beato.

Pastor e teólogo da Igreja Presbiteriana Unida, Joaquim Beato viveu 91 anos. Falecido em 2015, ele sempre declarava: “A minha formação básica é Bíblia, mas numa visão de que o pensamento bíblico não é um pensamento nascido nas alturas dos céus, mas nas lutas de cada dia”. Foi nessas bases que o pastor se tornou mestre em Antropologia e doutor em Sociologia.

Beato deixou marcas como cristão defensor da igualdade racial, da superação da intolerância e do diálogo ecumênico. Sua voz e suas ações ecoaram durante a ditadura militar. Rompendo as fronteiras religiosas foi professor universitário, senador suplente e secretário estadual e municipal das pastas da Educação, do Bem-Estar Social, da Cultura e da Cidadania no Espírito Santo.

Joaquim Beato dizia que um dos momentos mais importantes dos seus 65 anos de pastoreio foi participar da célebre Conferência do Nordeste como palestrante. E é aqui que quero chegar com este artigo.

Aquela foi a mais importante reunião até hoje realizada por lideranças evangélicas no Brasil. Ocorrida em 1962, em Recife, foi promovida pela Confederação Evangélica do Brasil, associação das igrejas evangélicas históricas, fundada em 1934. Com o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, o evento é considerado o ponto culminante de 20 anos de esforços educativos advindos das ações de diálogo e unidade entre os evangélicos. O próprio local da conferência foi escolhido como símbolo de aproximação com o Brasil da exploração, da miséria, dentro do mundo capitalista e também da esperança, da alternativa política.

Foi destaque o fato de uma reunião de evangélicos ter também conferencistas não religiosos como Celso Furtado (na época superintendente da Sudene) e pessoas renomadas como Paul Singer, Gilberto Freyre, Juarez Rubens Brandão Lopes. Foi o último grande evento da Confederação, fechada poucos anos depois por conta da repressão da ditadura militar que atingiu as igrejas.

Joaquim Beato falou em Recife sobre “Os profetas em épocas de transformações políticas e sociais”. O secretário da reunião, o presbiteriano Waldo Cesar, relatou sobre isto: “Os sociólogos presentes acompanham com interesse a descrição da sociedade israelita. Houve certa exclamação no auditório — menos pelo fato em si, do que pela semelhança de situações — quando o preletor disse que ‘os proprietários ricos e os capitalistas novos ricos conseguiam anular o direito de resgate das hipotecas e devoravam homens e terras, mantendo o agricultor na terra como colono ou vendendo-o com sua família com escravo’ (Palavras do Profeta Amós). A contemporaneidade dos profetas parecia um desafio à nossa fé estática e acomodada”.

Como precisamos de “Joaquins Beatos” entre os evangélicos hoje! Como carecemos de profetas verdadeiros! Já tive oportunidade de escrever neste espaço que há, sim, evangélicos que trilham caminhos muito semelhantes a esse, porém, estão invisibilizados pois não estão “hitando” ou “mitando” nas mídias, como se diz por aí.

Atualmente, discursos e práticas como os do Beato são interpretados, em boa parte dos espaços religiosos, como sem sucesso, “fora da visão” (de Deus) ou até mesmo equivocadamente desqualificados como “comunistas” (repetindo-se o que já se fazia naqueles anos 60).

O final daquela palestra de Joaquim Beato permanece ecoando. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: “Os profetas só tinham compromisso com o Deus que os chamara e enviara, [cujo] propósito era (como ainda o é!), criar comunidade em que sua justiça encontrasse perfeito cumprimento. Que diriam os profetas em nosso tempo? Que fariam os profetas em nosso tempo? Qual o propósito de Deus para como o povo brasileiro? Que testemunho daremos diante da nossa presente ordem social?”

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