Diálogos da Fé

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Por que é preciso afirmar o óbvio?

A liberação do ejaculador do ônibus e o despacho do juiz reafirmam a necessidade de descortinar cada elemento sexista dos eventos cotidianos

Por que é preciso afirmar o óbvio?
Por que é preciso afirmar o óbvio?
Parece óbvio, mas não é para muitos
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Muito se falou sobre o assunto na última semana, então comecemos a invocar o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht em nossa indignada indagação: Que tempos são estes em que temos de defender o óbvio?

São tempos insanos no quais um magistrado não reconhece o “constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça” em um ato sexual praticado sem consentimento. Ora, o fato de uma mulher estar em um ônibus e não esperar tal ato grotesco a coloca em posição de vulnerabilidade, logo se trata de violência evidente.

Ainda em vista de uma interpretação elástica e patriarcal da lei, nos vemos nos mesmos tempos em que uma mulher, Roberta da Silva Pereira, é condenada por cometer “ato obsceno em lugar exposto ao público” por ter mostrado seus seios durante uma manifestação na cidade de Guarulhos em 2013.

São tempos em que constrangimentos, violências e graves ameaças aos nossos corpos são comuns, naturalizados e permitidos. Mesmos tempos em que nos é negada a liberdade para transitar com naturalidade, a autonomia para dispor de nossos corpos ou exercer de maneira livre e segura nossa sexualidade.

São tempos em que palavras de ordem como “Meu corpo, minhas regras”, de tão óbvias, não fazem sentido algum em uma sociedade na qual o corpo feminino é entendido como “terra de ninguém”, um “algo” sem “alguém”, ao qual se pode desfrutar, possuir, controlar.

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O episódio do ejaculador, e ainda mais o equivocado entendimento do magistrado, suscita-nos a defender o óbvio que está além da violência manifesta. Defender o óbvio é convidar a nós mesmas a mergulhar mais fundo por meio da percepção da violência de gênero como uma construção social até chegar às estruturas e engrenagens que a produzem e a sustentam.

Para além de discutir se existe uma patologia por trás do comportamento e se ela justifica e atenua (ou não) seus atos, é preciso compreender que até mesmo os transtornos têm um componente social.

Um esquizofrênico do século XIX não teria como supor a colocação de um microchip em sua cabeça, uma vez que este objeto não existia. Assim como nossa imaginação, as neuroses estão vinculadas a uma realidade social concreta. Eis porque é importante olhar para além do fenômeno os elementos sociais que o compõe. O que nos faz questionar: que sociedade é esta que produz estes tipos de patologias?

Infelizmente, nem mesmo a obviedade do fenômeno está visível. É por isso que o exercício de defender o óbvio é imperativo. É preciso sempre descortinar o elemento sexista por trás da aparente normalidade de eventos cotidianos.

É preciso dizer mais uma vez que mulheres não têm segurança para transitar livremente pelos espaços públicos, e que a precariedade dos transportes públicos contribui ainda mais para as violências cotidianas contra seus corpos cansados.

Se por um lado a precarização diz respeito a causas estruturais, ao sistema econômico capitalista que se sustenta na exploração de trabalhadores e trabalhadoras, por outro ela não afeta igualmente homens e mulheres. O componente sexista faz com que as mulheres, além de sofrer com os longos e massacrantes deslocamentos em péssimas condições, andem sempre acompanhadas pelo temor da violência de gênero, ademais outras violências que também estão sujeitos os homens.

Nem mesmo alternativas de transporte têm se mostrado seguras: casos de assédio a passageiras e motoristas de aplicativos de transporte como o Uber estão cada vez mais frequentes, embora subnotificados. A maioria das mulheres que sofrem assédio preferem denunciar em suas redes sociais para servir de alerta a outras e também contar com a solidariedade e compreensão de suas companheiras do que recorrer a meios oficias de denúncias que tem se mostrado inócuos.

Defender o óbvio é deixar claro que não existe alternativa segura para as mulheres em uma sociedade que encara a violência de gênero como normal, ou nem sequer a enxerga. A cegueira social para com este tipo de violência é o que a avaliza e faz com que ela permaneça a assombrar nossos passos, limitando nossos caminhos, constrangendo nossa existência.

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