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Os espíritas na política e a busca de superação da instrumentalização da fé

Há significativos movimentos que têm marcado a busca pela organização de novos grupos espíritas que se pautam por uma visão transformadora

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“O que o [ser humano] semear, isso mesmo colherá” (Gálatas, 6:7)

A convite da querida amiga e professora Magali Cunha, que também escreve para essa coluna, elaborei para a Plataforma Religião e Poder do ISER este texto.

Em tempos de ameaças à democracia e à garantia de direitos das minorias, é preciso tomar partido, descer do muro, sair do armário e se posicionar contra todo tipo de intolerância e violência. Seja contra quem for. Mas não podemos confundir, em hipótese alguma, “a reação do oprimido com a violência do opressor”, como afirmou o defensor dos direitos dos afro-americanos Malcolm X. Já nas palavras de Kardec, em obras póstumas: “liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras constituem, por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação”.

Em 2018, momento em que enfrentávamos uma das eleições mais difíceis – avanço do conservadorismo, fake news, violência de gênero e política -, entrei em um grupo de Whatsapp intitulado “Espíritas na política”, a convite de alguns amigos. Consegui permanecer por cinco dias até ser expulso. Eram cerca de cem pessoas, com idades variadas, mas a maioria acima de cinquenta anos e mulheres, embora sejam os homens os que mais participavam e quase a totalidade do grupo declarava-se “apolítico/a”. Com o pretexto de debater candidaturas espíritas para cargos políticos, portanto partidários, o grupo é politicamente heterogêneo: tem desde apoiadores da ditadura, armamentistas, militaristas, até conservadores e – apesar de estarem em menor quantidade, pois costumam ser expulsos – progressistas e pessoas de esquerda, como era meu caso.

Lá, identifiquei três tipos de espíritas: os de esquerda e/ou progressistas (didaticamente e, às vezes, contundentemente, contrários a qualquer postura ou candidatos que fomentem violência, ataquem os direitos humanos e desrespeitem a democracia), os de centro – e, infelizmente, não é um trocadilho – (mais neutros e pendendo, quase que sempre, para a defesa de ideias conservadoras e reacionárias) e os de extrema-direita (esses últimos, impossíveis de estabelecer qualquer tipo de debate, pois não há abertura, respeito, reciprocidade e afeto). São os representantes desta última categoria que, diante de qualquer debate e na impossibilidade de argumentação, atacam com frases como: “você não é espírita”, “você não sabe ler”, “temos que descer até onde esses ignorantes estão”.

No auge de uma discussão, implicaram até com a imagem de um companheiro que usava, como foto de perfil, a obra In Voluptas Mors, do pintor surrealista Salvador Dalí com o fotógrafo Philippe Halsman. O caso chamou a atenção de um dos coordenadores do grupo que, embora também se declarasse apolítico, perseguia, intimidava, constrangia e tentava silenciar aqueles com pensamentos mais progressistas.

Vivemos dias tristes para a frágil democracia brasileira e isso, naturalmente, tem se refletido nas relações humanas. A facada em um candidato à Presidência da República escancarou as rupturas cívicas, éticas e morais que estamos vivendo. Mostrou-nos como precisamos nos posicionar duramente contra qualquer manifestação de ódio, violência e intolerância, mesmo que o alvo seja aqueles que retroalimentam esses sentimentos. Ou será que acreditaram em algum momento que isso tudo não se voltaria contra eles mesmos? Lei do retorno, das consequências, da causa e efeito – a causa é primária, o efeito, secundário –, o que Newton chamou de “ação e reação”: “uma força não pode exercer uma ação sem, no mesmo instante, gerar uma reação igual e diretamente oposta”, ou “toda causa gera um efeito correspondente”. Já Lucas, o apóstolo, diz que tudo que recebemos vem a partir do nosso ato de dar: “Dai e dar-se-vos-á” (6:38).

A política pode ser desenvolvida por pessoas religiosas e não religiosas. Há princípios religiosos que podem balizar a vida pública, mas aos religiosos cabe sempre lembrar que o Estado brasileiro é laico e que, portanto, não se pode desenvolver políticas públicas a partir de determinadas crenças ou preceitos de fé, sob o risco de deixar de fora aqueles/as que não comungam das mesmas convicções.

Não é novidade a atuação de espíritas na política. Bezerra de Menezes, por exemplo, fez isso de maneira brilhante. Liberal e de ideias abolicionistas, Bezerra não foi o “bom velhinho”, doce, que alguns espíritas insistem em apresentar ou representar. Enérgico, dono de uma fabulosa oratória, foi contemporâneo de Joaquim Nabuco, Dom Pedro II e Rui Barbosa.

Ainda que o espiritismo não faça nenhuma acepção de pessoas ou pregue qualquer tipo de discriminação, muitos/as trabalhadores/as e frequentadores/as de casas espíritas ainda são rotulados e excluídos por suas ideologias políticas, por sua condição socioeconômica e por questões de sexualidade e/ou gênero, por exemplo.

Há significativos movimentos que têm marcado a busca pela organização de novos grupos espíritas que se pautam por uma visão transformadora. Porém, não aquela transformação puramente individual, que ignora as relações humanas dialéticas, e sim a visão que compreenda que toda transformação humana passa necessariamente pela mudança radical nas relações sociais, porque, afinal, ninguém é capaz de se autotransformar ignorando as condições do contexto em que se insere.

Grupos como Espíritas à Esquerda, uma articulação de pessoas espíritas que foram se agregando a grupos virtuais (Espiritismo e Direitos Humanos, Abrepaz, Crítica Espírita, Pueblo Espírita, entre outros) demandaram continuamente um momento de reflexão conjunta e de encontro físico para estreitar as relações que se formavam. Tomam por  base o poder revolucionário da filosofia espírita, apregoam foco no povo, a classe trabalhadora que precisa, além de justas condições materiais de vida, de consciência social e política e de educação.

A partir deste posicionamento, Espíritas à Esquerda tem tornado públicos manifestos e notas com posicionamentos de oposição ao governo de Jair Bolsonaro, como a Nota dos espíritas progressistas ante a crise institucional brasileira, de julho de 2021, e o Manifesto de espíritas progressistas pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, de fevereiro de 2021. Em setembro de 2021, o movimento colheu assinaturas para o Manifesto de espíritas progressistas por justiça, paz e democracia. Também foi articulada a frente ampla de LGBTQI+, familiares e aliados/as espíritas, que emergiu com o objetivo de acolher, informar e combater manifestações odiosas que se utilizem dos ensinamentos dos espíritos para oprimir, estigmatizar e excluir. Além disso, essa frente se integra a tantas outras iniciativas existentes e que já vêm realizando um importante trabalho de educação para a diversidade, como Um gay espírita, Espíritas plurais, Homossexualidade Saudável e Diversidade espírita.

Há ainda o Coletivo Espíritas Antirracistas, que tem repudiado com veemência declarações racistas encontradas em grupos virtuais espíritas e se pronunciado diante desses atos com esforços para combater ações de violência e crime. Em dezembro de 2020, unindo-se ao movimento internacional Vidas Negras Importam, o coletivo lançou o manifesto com este título.

Temos muito trabalho pela frente, dentro e fora do movimento espírita: disputando narrativas, denunciando abusos cometidos por representantes espíritas, eliminando velhos paradigmas, construindo pontes ao invés de muros, ensinando, didaticamente, conceitos de bem viver e justiça social e, sobretudo, resgatando os preceitos de amor e diálogo de Kardec, esquecidos pelos pseudo-médiuns midiáticos, pelos dirigentes fanáticos e pelos expositores/as ensimesmados/as.

Afinal, como disse o pastor Martin Luther King, no livro Os Grandes Líderes: “Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não o fazer. Não posso ficar no meio de todas essas maldades sem tomar uma atitude”.

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