Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

O racismo de Kardec e o calcanhar de Aquiles dos espíritas

Devemos debater, com base em leituras evangélicas e antirracistas, o racismo estrutural da nossa sociedade branca e eurocêntrica

Allan Kardec (Foto: Flickr)

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“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.” – Angela Davis

Segundo a mitologia grega, Aquiles era um grande guerreiro, filho do rei Peleu (rei dos mirmidões, lendários povos tessálicos que acompanharam Aquiles à Guerra de Troia) e de Tétis, Deusa grega do mar. Tétis, querendo garantir a imortalidade do seu filho, mergulha Aquiles nas águas do rio Estige. Foi dessa forma que Aquiles tornou-se invulnerável, exceto no único ponto por onde Tétis o segurou e que não foi molhado: o calcanhar. Aquiles venceu muitas batalhas na Guerra de Tróia, no entanto, uma profecia indicava que morreria nessa guerra. Após matar Heitor e arrastar o seu corpo por Tróia, Páris, irmão de Heitor, trespassou uma flecha pelo calcanhar do guerreiro Aquiles e o matou.

Daí surgiu a expressão “calcanhar de Aquiles” que foi até tema de uma música de Elis Regina e significa, no popular, o ponto fraco de alguém ou alguma coisa. É o ponto em que uma pessoa se sente mais frágil, não possuindo domínio suficiente para controlar uma determinada situação. Além de pessoas, o calcanhar de Aquiles também se refere ao ponto vulnerável de uma organização, de um projeto, de uma tarefa, de uma religião…

Resgatei esse mito grego para iniciar o texto desta semana porque o tema, além de sensível e polêmico, é vergonhoso no meio espírita.

Embora esse não seja meu lugar de fala, já que tem muitos irmãos e irmãs negros/as invisibilizados/as a partir de suas próprias narrativas, penso ser importante debatermos – dentro e fora do movimento espírita – o combate ao racismo estrutural, a necessidade de ações afirmativas para o povo negro e o estímulo a luta antirracista.

Após essas explicações, peço licença para, enquanto homem branco e a partir das minhas vivências, trazer esse tema para o debate no meio espírita, sabendo que há várias produções e contribuições de pesquisadores/as e educadores/as negros/as na área do direito, da educação, da comunicação, da religião e do bem viver, que me inspiram nesta reflexão, como do pastor e teólogo Ronilso Pacheco, da Iyalorisa Winnie Bueno, do professor e Babalawô Ivanir dos Santos, da escritora Juliana Borges, dos Babalorixás e doutores Sidney Nogueira e Rodney William, do filósofo e professor Daniel Souza, da jornalista Vanessa Oliveira, do professor Fabio Mariano, do ativista Antonio Esupério. Em comum, além da excelência em suas áreas de atuação e pesquisa, são todos/as amigos/as queridos/as e próximos, com quem aprendo muito, todos os dias.


Trazer à tona o triste episódio do racismo de Allan Kardec – fruto de uma visão eurocêntrica de sua época – e que deve ser debatido e combatido, para não reforçar ideias obsoletas, preconceituosas e anticristãs ainda nos dias de hoje, é uma tarefa de todos/as aqueles/as que acreditam e lutam por uma sociedade mais plural, inclusiva e sem racismo.

Sua postura racista se manifestou em textos distintos e trago dois exemplos: em um artigo publicado na Revista Espírita em 1862 e outro, que aparece em Obras Póstumas (portanto não foi publicado por Kardec e talvez ele não o publicasse, suponho). O primeiro se chama “Frenologia Espírita e a perfectibilidade da Raça Negra” e o outro, “Teoria da Beleza”. Eis o trecho, a meu ver, mais problemático:

“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos. (Allan Kardec, Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita, abril de 1862.)”

Em 2006, lembra o amigo e pesquisador Elias Moraes, a Federação Espírita Brasileira e as demais editoras que publicam a obra literária de Allan Kardec foram acionadas pelo Ministério Público da Bahia em virtude de 106 referências consideradas racistas ou preconceituosas nos textos de Allan Kardec onde a ideia de “raça” alimentava o entendimento de que existem raças superiores e raças inferiores, e que as raças se sucedem mediante “aperfeiçoamento”, com a extinção gradativa daquelas consideradas “inferiores”. A essa crença foi dado o nome de darwinismo social. Mediante um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), as editoras espíritas foram legalmente constrangidas a inserir em cada um desses 106 pontos uma “nota de esclarecimento alusiva aos trechos nos quais se pode vislumbrar eventual conteúdo discriminatório ou preconceituoso”. Desde então todas as editoras que publicam os livros de Allan Kardec remetem o/a leitor/a, por meio de notas de rodapé, a uma nota no final do livro onde explicam “o contexto histórico, cultural e social existente na metade do século XIX na Europa, época e local em que foram redigidos os referidos textos.

Para o professor Lair Amaro, doutor em história, “é incontestável que a teoria “cientifica” da hierarquia das raças constituía uma verdade para Allan Kardec. Assim para ele (e para os espíritos superiores), as raças não-brancas encontravam-se em estágio inferior da evolução enquanto a raça branca estava no ápice.”

Todo conhecimento é fruto de seu tempo e precisamos olhar com cuidado para todas as outras obras de Kardec, que pregou a fraternidade entre todos/as, o amor ao próximo e a igualdade.

O espiritismo não é uma revelação sagrada, estanque, “imexível”. Kardec, como qualquer um de nós, cometeu equívocos e certamente, de onde ele está (no plano espiritual), deve se arrepender de algumas posturas.

Esse racismo estrutural, fruto de uma sociedade patriarcal, branca, heteronormativa, machista e preconceituosa, se manifesta, também, em pequenas brincadeiras, em chacotas, em olhares.

O sociólogo Clóvis Moura e o antropólogo Kabengele Munanga alertam que o racismo brasileiro é um fenômeno estrutural e estruturante das relações socioculturais. Moura coloca no centro do debate o racismo como elemento formador do Estado brasileiro. O antropólogo brasileiro-congolês aborda a falsa democracia racial e as particularidades do Brasil em comparação a outros países.

Nós, os/as religiosos/as, temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor. É necessário levantar a discussão, estimular e contribuir para a reflexão e promover ações propositivas para a superação do racismo e do genocídio negro.

É fundamental o diálogo entre comunidades de fé e movimentos sociais, movimentos negros, a confecção de material educativo que abordem o combate ao racismo e auxiliem na formação de irmãos e irmãs sensíveis aos problemas sociais. O racismo não pode ser tirado do debate no campo da fé.

Não basta apenas não sermos racista, como assegura Davis, esse é um dever legal, moral e cristão (no meu caso), devemos ter uma postura antirracista, condenando, combatendo e reprimindo, diariamente, todo tipo de preconceito e segregação por raça e cor, dentro e fora das nossas comunidades de fé.


Temos que transformar nossos espaços de fé em verdadeiras escolas de ética, cidadania e vivência plena do evangelho. Devemos debater, com base em leituras evangélicas e antirracistas, o racismo estrutural da nossa sociedade branca e eurocêntrica.

Moïse, presente!

Durval, presente!

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5 comentários

VANILTON RIBEIRO DOS SANTOS 2 de março de 2022 10h47
Denilson CM 22 de fevereiro de 2022 16h00
Com certeza Kardec não era racista. A inferioridade referida é sobre os espíritos encarnados, não sobre raça negra. Sugiro lerem o texto completo na revista espírita. https://www.sistemas.febnet.org.br/gerenciador/pdfRepository/2009-11-20-30.45f1619bf43ffc6b3c4e21170fd9bdf4.pdf
RICARDO CARNEIRO SANTOS 19 de fevereiro de 2022 14h40
Perfeita análise, Dr. Franklin Félix, citações equivocadas que remetem à cultura da época. Também os castigos Divinos, Castigos de Deus citações que vez por outra aparecem em O Livro dos Espíritos pertencem às convicções da sociedade de meados do século XIX, razão pela qual os Espíritos elevados se utilizavam destes termos para o entendimento da sociedade daquela época. Um Criador que assumimos como Soberanamente Bom e Justo jamais poderia ter a intenção de aplicar castigos em suas criaturas nossos infortúnios são decorrentes de nossos próprios atos, conforme máxima cristã: A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória! Até bem pouco tempo talvez ainda hoje correntes Cristãs consideravam índios e negros raças inferiores, imaginemos há século e meio, ou mais...
Janete de Oliveira Reis 29 de julho de 2023 23h36
Primeiramente, a opinião pessoal de Kardec não invalida a Doutrina Espírita e não desvaloriza o imenso trabalho de pesquisa do decodificador, tampouco os ensinamentos espirituais que ele ousou trazer à humanidade em época tão adversa. Jamais devemos tomar a parte pelo todo.. Ademais, se cada um de nós, em graus diferentes, ainda hoje lutamos contra o nosso próprio racismo, contra o nosso machismo, contra a nossa própria homofobia influenciados que somos por uma cultura materialista milenar, como não entender, sem nos escandalizarmos, as influências sofridas por Kardec, há 160 nos atrás? Segundo, a leitura atenta de todo o artigo parece mostrar que Kardec se referia às tribos selvagens. Ou como se explica que tenha escrito, um ano antes, o que se segue: [...] o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na Criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz com que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.” Revista Espírita, 1861, p. 432. Ou: Os privilégios de raças têm sua origem na abstração que os homens geralmente fazem do princípio espiritual, para considerar apenas o ser material exterior. Da força ou da fraqueza constitucional de uns, de uma diferença de cor em outros, do nascimento na opulência ou na miséria, da filiação consangüínea nobre ou plebéia, concluíram por uma superioridade ou uma inferioridade natural. Foi sobre este dado, que estabeleceram suas leis sociais e os privilégios de raças. Deste ponto de vista circunscrito, são conseqüentes consigo mesmos, porquanto, não considerando senão a vida material, certas classes parecem pertencer, e realmente pertencem, a raças diferentes. Mas se se tomar seu ponto de vista do ser espiritual, do ser essencial e progressivo, numa palavra, do Espírito, preexistente e sobrevivente a tudo cujo corpo não passa de um invólucro temporário, variando, como a roupa, de forma e de cor se, além disso, do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do Espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral que em vista desse avanço o Espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à conseqüência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças.Revista Espírita, 1867, p. 231.
Celio Arimateia 12 de março de 2024 17h22
Para mim, esse artigo, se de fato foi escrito por Allan Kardec, invalida toda a doutrina como um todo, inclusive coloca em dúvida se realmente foi o Livro dos Espíritos ditado por espíritos superiores. Aos espíritos evoluídos não existe a menor chance de considerar essa ou aquela raça ou etnia mais ou menos evoluída. Para a divindade o corpo material nada representa e ao escrever Kardec que os negros são como crianças que nunca crescerão é um racismo que certamente espíritos não tem, porque não são corpos, mas sim espíritos. Toda doutrína que traz em sua essência preconceito ou exclusão não é nem de perto verdadeira. Por tanto não adianta esse papinho: na época em que foi escrito era outro contexto. Espíritos superiores não tem outro contexto, apenas um contexto, igualdade, fraternidade e solidariedade sem preconceitos ou discriminações.

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