Diálogos da Fé

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O que uma mística alemã do século XII tem a nos dizer sobre a crise climática?

Os escritos de Hildegard de Bingen revelam uma profunda percepção sobre questões ambientais, antecipando problemas que hoje se concretizam bem diante de nossos olhos

O que uma mística alemã do século XII tem a nos dizer sobre a crise climática?
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Hildegard de Bingen foi uma monja beneditina alemã, nascida em 1098, às margens do Rio Reno. Em 2012, foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI, tornando-se uma das poucas mulheres a receber esse título. Como abadessa, médica natural, teóloga, compositora e oradora, Hildegard aconselhou uma grande variedade de pessoas e se envolveu com coragem nas disputas políticas entre a Igreja e o Império.

Eu conheci Hildegard em 2017, de uma maneira curiosa, não dentro da Igreja, mas por acaso, na internet. Naquele momento, eu estava fascinada por temas como o poder medicinal das plantas, ecofeminismo e uma espiritualidade mais ligada à natureza – parecia que Hildegard respondia a esses anseios, e ela era uma santa católica! Como eu nunca tinha ouvido falar dela?

A abadessa do Reno tem vivido um “revival” contemporâneo, especialmente fora dos muros da eclesiais. Ela é reconhecida por herbalistas e terapeutas holísticos que redescobrem suas prescrições medicinais e sua visão integral da saúde. Feministas a valorizam por ter desempenhado uma papel de liderança em uma Igreja patriarcal e também por ter sido a primeira mulher a descrever o orgasmo feminino. Sua obra musical também tem sido revitalizada por músicos que reinterpretam suas canções litúrgicas.

Hildegard de Bingen foi, sem dúvida, uma grande teóloga, cuja teologia possui um caráter profundamente imanente, centrado na criação. Diferente da tradição ocidental dominante, que muitas vezes exilou essa percepção em favor de uma espiritualidade quase exclusivamente focada na queda e redenção, Hildegard vai além. Ela destaca a influência dos elementos naturais — astros, plantas e pedras — na vida humana e a interconexão de todas as coisas. Em seu livro Das Obras Divinas, a teóloga afirma: “Assim, toda criatura está ligada a outra, e toda essência é condicionada por outra” (Visão 2, tradução nossa).

Mais do que uma mística, Hildegard de Bingen foi uma profetisa. Matthew Fox, ex-padre dominicano, a descreve como a “Profeta Verde” (Green Prophet), e esse título não é por acaso. Muitos de seus escritos revelam uma profunda percepção sobre questões ambientais, antecipando problemas que hoje se concretizam bem diante de nossos olhos.

Na terceira parte da sua obra Os Méritos da Vida, uma de suas importantes obras teológicas, Hildegard descreve a luta entre pecados e virtudes, abordando os desvios da humanidade e o consequente rompimento do ciclo natural da vida na Terra. Em uma de suas visões, ela relata que “viu” e “ouviu” uma conversa entre os elementos aflitos e a figura de um homem que preenchia todo o cosmos. Esse Homem Cósmico seria uma personificação do Deus triúno. Os elementos, em aflição, reclamam ao Homem Cósmico sobre a destruição e o desrespeito que a humanidade tem causado ao equilíbrio natural, refletindo a angústia da criação diante dos pecados cometidos contra ela. Os elementos gritaram:

‘Não podemos mais correr para concluir nosso curso como nosso Mestre ordenou. Pois as pessoas, com sua maldade, invertem nosso curso, como um moinho que vira tudo de cabeça para baixo. Já cheiramos a peste e temos fome pela plenitude da justiça.’ (tradução nossa).

Ao que o Homem Cósmico respondeu:

Eu os varrerei com meus galhos e afligirei as pessoas até que se voltem para mim. Agora, todos os ventos estão cheios da podridão das folhas, e o ar expele poluição de tal forma que as pessoas mal conseguem abrir suas bocas. A força vital verdejanta (viriditas) enfraqueceu por causa do desvio ímpio das almas humanas iludidas. Elas seguem apenas seus próprios desejos e gritam: Onde está esse Deus, a quem nunca temos a chance de ver?’ (tradução nossa).

É interessante observar que as visões de Hildegard são ricas em metáforas e simbolismos, atribuindo subjetividade à criação. Os elementos da natureza, como seres vivos, expressam sua aflição diante do caos gerado pelos desvios humanos. O Homem Cósmico, que em sua visão parece furioso e até vingativo, age por necessidade, em uma resposta inevitável ao desrespeito, soberba e avareza da humanidade. Esse simbolismo nos confronta diretamente com a realidade atual — o ar está tão poluído que mal se pode respirar.

Essa imagem não pode deixar de evocar os trágicos eventos recentes, como as queimadas que ocorreram em setembro deste ano, afetando vastas áreas do território brasileiro. São Paulo chegou a liderar o ranking mundial de pior qualidade do ar!

Ainda nessa visão, Hildegard menciona o declínio da viriditas, um conceito central em sua teologia. Viriditas é um termo em latim que significa literalmente “verdor”, “verdura” ou “verdidão”, associado à ideia de fertilidade, vitalidade e fecundidade. Para Hildegard, as virtudes são repletas de viriditas, representando a força vital divina que permeia e anima toda a criação. Por outro lado, o pecado leva à ariditas — aquilo que é árido, seco e sem vida. A ausência de virtudes gera um mundo estéril, carente da vitalidade e do equilíbrio que a viriditas proporciona. Essa imagem do declínio da viriditas no contexto dos pecados contra a criação evoca a perda de harmonia com a natureza, onde os desvios humanos afetam diretamente a integridade e a vitalidade do cosmos, conduzindo a um estado de esterilidade, caos e desarmonia.

Essa ideia é reforçada na última parte do livro As Obras Divinas, onde a viriditas está intimamente ligada à noção justiça. Quando a justiça entra em declínio, toda a vitalidade e ciclicidade da Terra é afetada. Nesse sentido, Hildegard escreve: “O verão tornou-se agora sujeito a um frio contraditório, enquanto o inverno experimentava frequentemente um calor paradoxal” (Visão 12, tradução nossa). É surpreendente a sensibilidade profética de Hildegard nessa passagem, que antecipa com precisão as mudanças climáticas que sentimos em nossa pele no século XXI.

No entanto, Hildegard também é uma profetisa da esperança e acredita que, depois de um período de esvaziamento das virtudes, haverá “um novo céu e uma nova terra”. Ela descreve: “Nesses dias, nuvens doces tocarão a Terra com um sopro suave e farão com que a Terra transborde de poder, verdejância e fertilidade” (Visão 10, tradução nossa). A teologia visionária de Hildegard nos ensina que é preciso “escutar com os ouvidos do coração” os clamores da Terra, fazendo de nossos esforços ecológicos, antes de tudo, uma tarefa espiritual. É uma dialética entre nossa intuição mística e um pragmatismo político; é a experiência do mistério revelado na criação, como fonte e ânimo para uma verdadeira transformação pessoal, social e ecológica.

Somente mais três mulheres possuem esse título dentro da igreja: Teresa de Ávila, Catarina de Sena e Teresinha de Lisieux (os outros 32 com esse título são homens).

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