Diálogos da Fé

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O que o livro do Apocalipse tem a dizer nestes tempos difíceis?

Identificado com a imagem do aniquilamento e da desesperança, o texto permite leituras distintas e a visão de um outro mundo, mais fraterno

A leitura superficial do Apocalipse leva à ideia de destruição
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Historicamente há um clima negativo em torno do livro “Apocalipse”, da Bíblia. Por conta do conteúdo hermético, recheado de mensagens simbólicas, foi construído um imaginário em torno dele como um livro de previsões de um futuro terrível. Tanto que o termo “apocalipse” tornou-se sinônimo de ruína, aniquilamento, desgraça, fim do mundo.

A ideia de que o Apocalipse é uma futurologia destrutiva resulta do tipo de leitura da Bíblia classificada como literalista ou fundamentalista.

Esta é a forma de leitura “presa” ao texto tal como se apresenta, sem contextualização histórica e cultural ou interpretação que recorra às chamadas ciências bíblicas (arqueologia, a literatura comparada, a história, a filologia, as ciências humanas e sociais).

Desta leitura sem mediações brotou o imaginário do fim do mundo decretado por Deus, com a derrota de Satanás/Diabo e de todos os seus representantes e a salvação dos crentes em Jesus.

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Por isso foram marcadas várias datas para o fim do mundo, detectados vários anticristos em épocas diferentes (geralmente lideranças de quem se discordava) e identificadas distintas práticas e costumes alinhadas com a visão do mal contida no texto.

Há, porém, outra forma de ler o Apocalipse, com um olhar mais positivo e esperançoso do futuro. Esta leitura brota dos estudos que buscam entender como, por que e para que os textos bíblicos foram escritos, e lança mão de recursos científicos para sua interpretação.

Assim se pode aprender que o Apocalipse é uma carta escrita pelo apóstolo João (ou por discípulos de sua comunidade) que estava preso pelo Império Romano na ilha Patmos, um presídio do Império Romano para aqueles considerados perigosos e presos políticos, como era considerado João e outros cristãos que se opunham às ações do Império Romano.

A carta, tempos depois intitulada Apocalipse (do grego “Revelação”), escrita cerca de 90 anos depois de Jesus, foi dirigida a grupos cristãos reunidos em comunidades que sofriam perseguição. Por isso é uma carta em forma enigmática, para que só os destinatários compreendessem, driblando a censura.

O Império Romano propagava que o imperador era o Senhor do Mundo, como um Deus (Ap. 13. 4 e 14), e os cristãos pregavam o contrário: “Jesus é o Senhor dos Senhores” (Ap. 17.14 e 10.16).

E não era uma disputa só de palavras: todos deviam prestar culto ao imperador (Ap. 13. 8-15). Assim, apoiado na religião, o governante montou todo um sistema que controlava a vida do povo, inclusive a compra e a venda do que era produzido na sociedade agrícola (Ap. 13. 16-17), e que explorava os pobres para manter o privilégio de poucos (Ap. 18. 3, 9, 11-19).

Na fé cristã, o Deus criador é um só, por isso todas os irmãs e irmãos, e não deve haver distinções e privilégios. Com isso, os cristãos das primeiras igrejas procuravam viver como irmãos: compartilhavam seus bens, escapando assim dos altos impostos, ensinavam que todos eram iguais, condenavam os ricos que exploravam os trabalhadores, e se contrapunham ao Império Romano que representava o contrário de tudo isto.

Daí tanta perseguição. Mas em alguns casos havia adesão de quem preferia se resguardar e se beneficiar deste sistema, apesar de cristão.

João desejava animar as comunidades para que elas não desistissem e continuassem fiéis aos princípios da fé cristã e também chamar a atenção daqueles que traíam estas bases para apoiar o Império.

Todas as visões de João relatadas no livro diziam respeito à situação de perseguição em que se encontravam os indivíduos das igrejas naquele momento.

Muitas imagens e símbolos eram extraídos dos registros de fé do passado (o que conhecemos como Antigo Testamento da Bíblia). Isso ajudava os perseguidos a identificar nas visões a força que vinha da história. A memória servia para dar coragem. Por isso Deus era apresentado como o Alfa e o Ômega (a primeira e a última letra do alfabeto grego), ou seja, ele seria o mesmo de ontem, de hoje e de amanhã, aquele que não se esquece das promessas de salvação, sofre junto, como sofreu Jesus, e busca a superação de toda dor.

Não é por acaso que uma das expressões que mais se repetem no Apocalipse é: “Não tenham medo”.

Há, no texto, referências muito duras ao Império Romano e seus apoiadores, como a figura da Besta que emergia do mar (trajeto das invasões romanas) e do anticristo. E são muitas as representações da esperança: um novo céu e uma nova terra, um novo tempo para uma nova vida de justiça e liberdade.

João escreve para e sobre o seu tempo, não para pregar uma destruição futura, mas com o intuito de afastar o medo e espalhar esperança no presente. A aniquilação seria destinada ao Império e seus apoiadores.

Vivemos hoje tempos muito semelhante àquele das comunidades para quem João escreveu. Novas versões do Império materializadas no poder econômico-financeiro excludente de grupos e países, nas execuções de quem se opõe a esta lógica, na segregação de indivíduos e grupos humanos, nos estados de exceção, na emergência de líderes políticos suscitadores de intolerância e ódio, nas ações terroristas de milícias políticas e de governos, entre tantas práticas.

Tempos de exacerbação da crueldade, da hostilidade, da indiferença ao sofrimento, da banalização da violência, da ganância, da idealização da vingança. Como no passado, também há adesões e sustentação das novas versões do Império por parte de quem declara seguir Jesus.

Ainda assim, perseveram cidadãos, grupos, comunidades religiosas ou não, que se opõem a esta realidade de injustiça, sofrimento e morte.

O Apocalipse inspira a pensar que Aquele que é o Alfa e o Ômega, que era antes e permanece agora, “conhece estas obras” de perseverança e resistência, quando o medo é superado com base na fé e na esperança.

É assim que o Apocalipse precisa ser uma mensagem hoje: alimento para a crença de que um novo céu e uma nova terra virão, de que um outro mundo é possível.

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