Diálogos da Fé

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Jesus de Nazaré resistiu às tentações do diabo no deserto. Podemos dizer o mesmo de certas lideranças religiosas na atualidade?

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Desde ontem, Quarta-Feira de Cinzas, estamos no tempo da Quaresma, segundo o calendário cristão. Estou no grupo dos poucos evangélicos que tiveram chance de aprender e valorizar este período como uma oportunidade de revisão da vida. Digo isto por causa da teologia e do jeito de cultuar e de ser que as igrejas protestantes (evangélicas) construíram no Brasil. Esta cultura evangélica brasileira faz com que grande maioria dos fiéis deste segmento desconsidere o calendário cristão e seus ensinamentos, compreendendo-o como propriedade do Catolicismo Romano.

Os quarenta dias, quaresma, que antecedem a Páscoa, procuram recuperar o sentido do número 40 registrado nos textos sagrados. Da conhecida história do dilúvio (os 40 dias em que a terra ficou submersa), passando pelo tempo do êxodo do povo hebreu no deserto, do Egito à Terra Prometida (40 anos), ao número de dias que Jesus passou no deserto antes de iniciar sua intensa vida pública (40 dias), são muitas as referências ao número nas narrativas da Bíblia cristã.

Em todas elas, este número indica não um tempo cronológico exato, mas, de acordo com a cultura e visão do mundo dos povos do Oriente Médio, um momento vivido na sua completude, que, frequentemente, marca a realização de um tempo significativo de decisões e mudanças.

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É por isso que, no contexto cristão, um dos textos mais importantes para reflexão durante a Quaresma é a narrativa sobre Jesus de Nazaré no deserto, conhecida como “As três tentações de Cristo”.

O texto conta que, antes de começar sua vida pública, tendo se retirado para o deserto, para um momento de preparação, de mudança (40 dias), Jesus foi tentado três vezes pelo diabo. As três tentações representavam desafios e, se respondidos como sugerido pelo diabo (do grego diabolos, caluniador, opositor, criador de confusão e divisão), dariam novo rumo às ações do Nazareno. Tornaram-se então importante momento de decisão. Eram elas: transformar pedras em pães, receber autoridade e poder sobre todos os reinos do mundo (no caso, sobre o Império Romano que os dominava), subir ao ponto mais alto do Templo de Jerusalém e se jogar para que anjos o amparassem.

Basta uma simples observação para se perceber que, no universo religioso cristão, quando se prega e ensina sobre “tentação”, os desafios a serem superados são fundamentalmente relacionados ao controle do corpo e do prazer. Nesse caso, tentações passam pelo sexo fora do casamento legalizado (antes dele ou em adultério), pelo consumo de bebida alcoólica e de fumo, pelo lazer fora dos espaços considerados sagrados.

Neste último, está a participação em festas populares, principalmente o Carnaval, e em espaços relacionados à música popular e à dança, em alguns casos, até mesmo ao cinema, ao teatro e ao futebol. Isto tem relação estreita com o puritanismo evangélico trazido ao Brasil a partir de 1850 por missionários do sul dos EUA. 

Tive, porém, a oportunidade de aprender, neste mesmo contexto evangélico, com gente que conseguiu dar um passo adiante, a ler a Bíblia com outros olhos. Este outro olhar me fez enxergar que a narrativa das tentações não tem relação com este moralismo e apresenta o que de fato interessa para quem decide seguir o caminho cristão com coerência.

A narrativa das tentações chama atenção mesmo é para as propostas da parte da oposição (diabo) aos projetos de vida e de ação de Jesus de Nazaré. Primeiramente, a proposta de ele transformar pedras em pães, em um mundo de famintos, a fim de atrair consumidores de religião sem conteúdo, interessados em uma imediata satisfação material, tornando oculta a necessidade de justiça social na busca pelo “pão”.

Também autoridade e poder sobre os reinos do mundo, mantendo-se na lógica da dominação, da violência e da exploração, própria dos Impérios. E por fim, se jogar do ponto mais alto do templo para ser aparado por anjos, oferecendo um grande show da fé, e atrair e distrair multidões, mais uma vez, com uma religião sem conteúdo e vínculo com a vida plena para todos.  

Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré disse “não” a tudo isto, em nome de sua fé, que implicava compartilhamento e vida comunitária, compromisso radical com a paz e a justiça, simplicidade, despojamento e solidariedade.

Não é preciso muito esforço para se avaliar que há muitas lideranças religiosas de hoje dizendo “sim” às propostas-tentações de religião de sucesso, assistencialismo que enfatiza apenas o material como elemento atraente de público, espetáculo e sede de poder eclesiástico e político partidário.

Neste sentido, a Quaresma torna-se uma oportunidade de revisão da vida para os religiosos, mas também uma inspiração para quem não é. A partir da atitude de Jesus, assumir este período para ser vivido na sua completude. Um momento para decisões e para mudanças. Tempo de reafirmar projetos de vida ou de revê-los, mas com um sentido profundo: se opor às tentações, rejeitando aquilo que represente uma vida superficial e sem conteúdo, que compromete a paz com justiça, nossa autenticidade e dignidade.

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