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O motorista, o porteiro, o faxineiro e a revolução dos invisíveis

A consciência de classe ainda é um caminho para a desconstrução das desigualdades

Foto: Agência Brasil
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Os indícios já vinham aparecendo aqui e ali, mas o depoimento do porteiro parece vincular de maneira contundente o nome do presidente da República e de sua família aos milicianos que ordenaram e executaram o assassinato do motorista Anderson Gomes e da vereadora Marielle Franco.

A grande pressão da sociedade contrasta com a morosidade e incompetência das autoridades do Rio de Janeiro e federais na investigação do caso. Das polícias militar e civil, passando pelo Ministério Público e chegando, inclusive, à Procuradoria Geral da República, o que se viu desde o início foi um desinteresse e até um embargo na busca de provas e no cumprimento dos trâmites.

Como no Brasil as relações e decisões pessoais influenciam e demandam o ordenamento e as ações institucionais, ao não ser reconduzida ao cargo, a então procuradora Raquel Dodge, num último ato (que para muitos soou como vingança), faz graves acusações de falhas e fraudes nas investigações realizadas pela polícia civil do Rio de janeiro e pede a federalização do caso. Ao acusar Domingos Brazão, Dodge abre caminho para uma série de vazamentos e denúncias que culminam na citação do nome do presidente Jair Bolsonaro.

Um porteiro afirmou em depoimento que no dia do crime um dos envolvidos, o ex-policial Élcio Queiroz, teria pedido e obtido autorização do presidente para entrar no seu condomínio, conforme revelou reportagem do Jornal Nacional. Apesar do Ministério Público do Rio de Janeiro esclarecer que as declarações do funcionário se contradizem com as gravações em poder das autoridades, muitas suspeitas ainda pairam e esbarram na desqualificação da testemunha, que, longe de refutar as evidências, remete a uma noção que sempre hierarquizou as vozes dos indivíduos na sociedade brasileira: a invisibilidade social.

O conceito sempre foi utilizado para se referir a pessoas socialmente invisíveis, o que implica não só a indiferença, mas, sobretudo, o preconceito e a discriminação que impõem e mantêm um tratamento desigual àqueles que se encontram em condições marginalizadas ou ocupam postos de trabalho considerados menos dignos. Fatores imbricados, como questões raciais, econômicas, sexuais, de gênero e etária, colaboram para a manutenção desses lugares sociais, que sugerem, entre outras coisas, que a palavra desses indivíduos, quando ouvida, tem pouca ou nenhuma credibilidade.

Pessoas marcadas pela invisibilidade social são obrigadas a suportar o descaso, a indiferença. São considerados seres sem nenhuma importância, que só têm sua existência lembrada quando geram algum incômodo, como no caso em questão. Trata-se de uma forma de discriminação que sempre esteve presente em nossa sociedade, praticamente um resquício da escravidão que ainda leva uma elite a olhar para os serviçais como “criados-mudos”, ou seja, como peças que cumprem suas funções sem direito à voz.

Seres invisíveis, sem nome, sem história. Peças que mantêm uma engrenagem. Objetos na paisagem. Porteiros, faxineiros, empregadas domésticas, copeiras, camareiras, motoristas, garis, estivadores, trabalhadores braçais em geral, aqueles que fazem o serviço pesado, sujo, triste. Seres desprezíveis que por indolência e comodismo não alçam a melhores posições. Um morador de rua, um mendigo, um andarilho. Um elemento absolutamente ignorado, tão importante quanto os postes ou as árvores que servem aos cães de latrina.

Quem precisa se preocupar com essa gente? Quem vai dar crédito a essa gente? Aliás, quem disse que são gente? Pessoas vistas como peças, utilizadas na medida da conveniência dos que têm poder e existência reconhecida. E é bom que se diga que não se trata de poder econômico apenas. Ter acesso a bens de consumo não assegura mudança de status social. Há inúmeros componentes que determinam o lugar de um indivíduo, estabelecendo seu papel nessa hierarquia estrutural.

Como as ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante, há os que se conformam e seguem resignadamente acreditando que a vida é assim mesmo. Escamotear a dor, por vezes, é uma condição para continuar e suportar, mas os processos psicológicos desencadeados pela invisibilidade social não são poucos. Por outro lado, a percepção dessa condição acaba conduzindo a processos de mobilização e organização das minorias discriminadas. A consciência de classe ainda é um caminho para a desconstrução das desigualdades.

Reduzir a questão ao fator econômico é um grande equívoco. Vivemos numa sociedade que se estrutura no racismo e tem na escravidão seu grande referencial de hierarquia e relações de poder. Esses lugares sociais de invisibilidade são, de certa forma, a continuidade de um sistema e de uma mentalidade que organizam esse país de acordo com a vontade das elites escravocratas, mantendo e reproduzindo privilégios em detrimento dos direitos da população. A maneira como se trata o outro, principalmente os mais simples, diz muito sobre o caráter de um povo e suas instituições.

A hierarquização da sociedade, da qual o racismo é base, alimenta toda gama de preconceitos e discriminações. Isso produz e sustenta a invisibilidade, que recai sobre tudo que não se enquadra nos moldes de vida das classes que se consideram superiores. Assim, despreza-se o trabalhador mais simples, o criado, a empregada. Coloca-se em questão a capacidade dessas pessoas e fala-se e faz-se de tudo na sua frente, porque, afinal, quem dará crédito ao testemunho de um porteiro?

Para quem se acostumou a desprezar e humilhar funcionários, é difícil acreditar que terão a ousadia de denunciá-los e, ainda que denunciem, sempre existe a possibilidade da desqualificação como instrumento de defesa. Gritar e abafar a voz dos insurgentes sempre foi uma estratégia dos poderosos. O “manda quem pode, obedece quem tem juízo” sempre demarcou os lugares de subserviência das pessoas mais pobres, que se calavam por medo de perder o emprego ou por verem suas vidas de alguma forma ameaçadas.

As hienas sempre simbolizaram os seres desprezíveis, aqueles que individualmente não têm poder algum, mas que unidos conseguem ameaçar a autoridade absoluta do Leão. Afinal, o que pode um leão sem seu bando? As instituições republicanas não se dobram ao absolutismo. Essa incompatibilidade induz a dois caminhos: ou o chefe de Estado se sobrepõe às instituições e as desautoriza por meio de uma ditadura ou as instituições vão se valer da força dos “invisíveis” para destituir o governo autoritário.

A revolução dos invisíveis traz à cena o mesmo personagem que já colocou em xeque outros tantos poderosos. Faz ecoar fortemente o grito de Marielle, que sintetiza em seu martírio as vozes de todas as minorias que se contrapõem não só a Jair Bolsonaro, mas a uma estrutura social que não ajuda a promover a igualdade nem preza pelos trâmites do devido processo legal e da justiça.

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