Diálogos da Fé

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O individual e o coletivo: paradoxos da História

Vivemos um momento quase ‘indeterminado’ da humanidade. Já não sabemos onde está o bem, a verdade, o direito, a justiça

Vivemos apartados
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O que é o coletivo para um eu que tem tantas necessidades? O que é o coletivo quando a barriga geme de fome e olha os doces e salgados da vitrine de uma padaria? O que é o coletivo quando a casa acabou de desabar e se está ao relento com quatro crianças? O que é o coletivo quando a sede foi tanta que alguém bebeu toda a garrafa sem mesmo pensar que podia partilhar com o colega?

O que é o coletivo quando há um helicóptero à minha espera para me levar para casa atravessando os céus da cidade grande, longe do engarrafamento do trânsito? E um jantar abundante regado a vinho? E depois, antes da cama, um banho quente com essências francesas relaxantes?

O que é mesmo o coletivo? O coletivo que nos faria ser nós, eles e elas? O que é o coletivo que nos obriga a respeitar leis e direitos? O que é o coletivo que nos convida a “amar os outros como a nós mesmos” e amar a Terra?  Como é a relação entre o indivíduo e a coletividade na chave capitalista, economicista, pluralista e excludente na qual vivemos?

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O coletivo aparece como uma palavra que congrega vontades individuais que se tornam elas mesmas a vontade e as possibilidades do coletivo.

O coletivo parece ser uma totalidade imaginada de interconexão entre os seres humanos que provoca o sentimento de ser parte de uma história comum onde iniciativas, esperanças e direitos podem convergir.

Vivemos, no entanto, o coletivo de forma paradoxal. Há divisões internas no coletivo.

Hoje, especialmente, ele se manifesta em dois grandes mundos opostos com variações e hierarquias sociais. O maior coletivo é o das maiorias excluídas de bens e de direitos e nessas maiorias as mulheres na sua diversidade são em maior número. Ironicamente essa maioria coletiva de excluídos/as cresce assustadoramente aos nossos olhos como seres descartados da cidadania afirmada como direito.

Para essa coletividade maior, as portas da democracia cidadã estão quase fechadas. Paradoxalmente as pequenas coletividades marcadas por privilégios fizeram do coletivo uma plutocracia na qual o dinheiro e o poder são a moeda de troca que os mantêm nas alturas. E o topo da pirâmide comporta pouco espaço.

Não há pacto coletivo real entre essas duas coletividades, mas uma coletividade ameaça a outra de extermínio, embora seja a coletividade menor que mantêm para si a proteção do Exército, da força policial e da produção de armas. É o coletivo menor que manipula e detém o poder num jogo de cartas marcadas.

Ameaças, chacinas, explosões, marchas, greves, manifestações são as tentativas de sobrevivência da coletividade maior, nessa guerra desigual com aparência de ordem que começa desde o raiar do dia e se estende pelas noites escuras.

Fingimos que está tudo bem, tudo sob controle, tudo sob as bênçãos divinas. Basta obedecer as leis, basta seguir as ordens dos dirigentes e evitar badernas. Mas quem faz a baderna? Quem a provoca? Quem está na sua origem? Os tribunais superiores não ousam julgar e responder a essa questão.

Nem esquerda, nem direita, nem indivíduos, nem as coletividades sabem mais o que é igualdade de direitos e liberdade de fato e de direito.

 Direitos e liberdades passam a ser palavras quase em ‘desuso real’, ao ponto de prescindirmos de tentar explicitá-las e entendê-las para nós mesmos no hoje de nossa história. Parece que direitos, igualdade, liberdade não fazem mais parte do vocabulário contemporâneo da maioria dos movimentos populares e dos políticos de profissão. Banalizam seu uso.

O mercado introduziu outras palavras mais apaixonantes e mais compensatórias. Prefere a competição, o consumismo, o comércio, a Bolsa, a prosperidade que correspondem mais ao imediatismo de nossos tempos. Muitas vezes os movimentos coletivos de massa apenas tentam uma barganha de direitos sem de fato entenderem o que querem como coletivo maior, como coletividade despossuída de direitos reais.

Nessa luta desigual sempre acabam culpados pela violência gerada e rechaçados até pelos iguais. Fica cada vez mais claro que a violência dos ricos, do coletivo menor, não é visível porque aparece como manutenção da ordem estabelecida e do dinheiro.

Apenas os pobres e entre eles os que gritam são considerados os produtores de violência. Apenas as mulheres pobres que abortam saem com um prontuário policial de criminosas, enquanto as ricas saem em carros particulares das clínicas especializadas, tornando invisíveis seu ato e os direitos que privativamente assumem para si.

Uma dimensão verdadeiramente coletiva da história humana guardando a diversidade que nos caracteriza seria possível? Não sei? Mas ouso esperar, embora reconheça minha desafinada esperança.

Apesar de nossos avanços na ciência e na tecnologia, há uma espécie de retardo naquilo que poderíamos chamar de desenvolvimento da ‘interioridade humana’, de descoberta do outro/a como de fato e de direito meu semelhante.

Há um retardo em ações coletivas efetivas que vão mais além do que a esmola emergencial ou as ações supletivas.

Vivemos um momento quase ‘indeterminado’ da humanidade. Já não sabemos onde está o bem, a verdade, o direito, a justiça. Já não sabemos abrir mão do lustro de nosso egocentrismo reduzido ao prazer instantâneo. Já não sabemos ouvir, nem ver os diferentes.

Não há mais o reconhecimento do outro como meu semelhante nem da morte como meu fim. Essas verdades outrora pregadas pelas religiões parecem enfraquecidas e submersas pelo capitalismo e hoje também pelas mensagens banais que enviamos uns aos outros diariamente.

Observa-se o quanto crenças religiosas em cumplicidade com o ‘deus dinheiro’ entorpecem seus fiéis com promessas milagrosas de cidadania celeste. Sem perceber nutrimos a alienação e nos auto-justificamos recusando qualquer critica ou auto-avaliação que vise um esforço social comum.

Não sabemos mais organizar estruturas de valor social e político mais ou menos comuns e provisoriamente duráveis. Estamos arraigados aos velhos modelos, às ‘palavras de ordem’. Cada um grita por seu interesse ou por sua opinião. Alguns por moradia, outros por maiores lucros para seus bancos e empresas. O coletivo aparece como paradoxal, contraditório, partidário, reduzido ao individualismo.

Ouso reafirmar que coletivamente precisamos reaprender o ‘amor social’ para além do individualismo narcisista. Talvez buscar outro alfabeto, outra cartilha, outra gramática, outras atividades para tirarmos do mais interior de nós a realidade relacional e interdependente de nossas vidas.

Voltar a unir público e privado, individualidade e coletividade em vista da sobrevivência comum. Reencarnar a política a partir das coisas necessárias à manutenção da vida da população, reinventar formas participativas segundo os interesses comuns de todos…

É como se pedíssemos a ‘volta da alma’ de cada individuo, da coletividade e da política. A ‘volta da alma’ é o resgate da fragilidade da vida, de sua precariedade, da sua interdependência vital, de sua beleza. Por isso a necessidade de uma política que preserve o bem individual coletivo torna-se urgente.

Individual e coletivo: paradoxos do momento. Por quê? Porque nos tornamos odiosos uns para os outros, nos tornamos mais lobos uns para os outros, ávidos da carne alheia, ávidos da morte dos empobrecidos, ávidos de dinheiro para que reine a liberdade burguesa, a fraternidade entre iguais e a liberdade de oferta de mercadorias e consumo. Como sair desse marasmo, desse dilúvio de lama no qual estamos nos afundando?

Os pontos de interrogação dominam as reflexões do momento como num círculo vicioso em que tudo parece complicado e sem solução. Nossa incapacidade de encontrar saídas por meio dos discursos teóricos é evidente.

Gostaria de convidar-nos a sair pelas ruas, pelos campos sem lenço nem documento… Sair para conversar, encontrar gente com gente, encontrar a vida real e de novo sentir o cheiro da diversidade de indivíduos, de sua beleza ou feiura.

Em seguida, agrupar-nos e tentar pensar e agir a partir do que nosso corpo sentiu, dos fatos que nos emocionaram e encantaram.

O mundo do cotidiano dos seres humanos é um mar de possibilidades. Quem sabe encontraremos na rua, no morro, no campo alguma resposta às nossas perguntas… O problema e a resposta são para hoje. A cada dia basta a sua preocupação.

Quem sabe sairemos do egoísmo dominante, da corrupção doentia que nos assola, do consumismo que atordoa e embriaga… Quem sabe a consciência da dor comum nos una de novo e crie novas possibilidades de convivência.

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