Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

O grito de Marielle ainda ecoa

Quantos dos nossos partiram sem dizer adeus? Mas nada foi em vão. Quando um tomba, outro se ergue e segue na luta

Homenagem a Marielle na Câmara dos Deputados
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Passavam dos duzentos açoites quando ela perdeu as forças e deixou de contar. Era uma dor atroz. No tronco, com as mãos amarradas, estendidas. De costas para o feitor e de frente para o senhor, ele fitava aqueles olhos verdes, impassíveis, que fiscalizavam a execução da sentença. Ela pediu clemência, já não tinha lágrimas, já não tinha voz.

Naquele corpo não havia mais sangue, não havia mais cor. “Jogue a salmoura”, ordenou o sinhozinho. Mas a morte lhe tocara a fronte. Ele a encarou sem medo. “Agora podem fazer o que bem quiserem com ele, e que sirva de exemplo pra todos aqui: não ousem se rebelar”.

Morreu altivo. Sequer piscou, não emitiu um único gemido. Aquele silêncio ecoou, porém, cruzou terras, céus e mares e chegou à terra-mãe. Ele estava salvo, livre, pronto pra seguir na luta. O senhor saiu a pisar a poça de sangue, deixando seu rastro de sofrimento e ódio.

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A menina o encarou e ele riu com sarcasmo. “Sua hora vai chegar, insolente”, murmurou enquanto montava o cavalo. Naquele dia ela aprendeu a não chorar diante da morte. Olhou pra velha árvore, deitou entre as raízes e mirou a frondosa copa, onde as folhas pareciam desenhar o semblante nobre daquele que lhe ensinara a nunca desistir. Ela sorriu. Nem a morte derrotou seu herói.

Aos pés do iroko, a árvore-orixá, ela reunia seus camaradas. E falavam das injustiças, da maldade dos senhores. Lembravam daqueles que se foram, da coragem e dos ensinamentos dos ancestrais. Conspiravam, tramavam, articulavam-se. “Vamos fugir”, decidiu a líder. “Por essas matas e morros ninguém pega a gente”.

Todos conheciam os segredos. Um sabia subir e descer montanhas e andar pelo mato sem deixar rastro. Outro guiava-se pelo sol e nunca errava a direção. Havia ainda os que conheciam as folhas e frutos que alimentavam, curavam, matavam. O preto velho consultou os orixás, determinou as oferendas e o dia favorável. Também descreveu o local onde se formaria o novo quilombo, mas não queria seguir com o grupo. Ela se recusou a ir sem o velho pai dos negros e designou três homens fortes para carrega-lo na caminhada.

Os festejos da padroeira do arraial sempre entravam pela madrugada. Senhores, feitores e suas famílias cumpriam as obrigações religiosas, depois se entregavam à farra. Nesse dia a vigilância era mais frouxa, portanto, não havia ocasião melhor. O preto velho fez um preparado de ervas que as negras da casa-grande adicionaram à aguardente e às comidas. Os que sobrevivessem ficariam sonolentos por alguns dias e quando se dessem conta da fuga eles estariam bem longe.

Pegaram o que podiam e seguiram na direção indicada. Dias e dias de viagem, cansaço, alguns feridos, todos exaustos. Tinham perdido a noção de quantas noites caminharam, até os primeiros raios do sol mostrarem a copa reluzente de uma embaúba. O preto velho sorriu: “Chegamos”.

Olhos vermelhos de ódio. “Negrinha infeliz”, gritava o sinhozinho. “Desde pequena me desafiava com aquela empáfia. Mas ela me paga. Leve o tempo que for, eu vou reaver essa desgraçada”.

Anos se seguiram. Em torno da árvore prateada, que consagraram a ajagunan, cresceu e prosperou o Quilombo da Umbaúba. O tambor ecoava e mais negros e negras se juntavam. Plantavam, caçavam, criavam os animais que furtavam das vilas na calada da noite. O contingente aumentou e começaram as preocupações.

A rainha ainda guardava o olhar forte daquela menina que testemunhara o sofrimento de seu povo, que viu morrer o homem que respeitava como pai e que a inspirou a seguir na luta. O velho iroko era vivo em sua lembrança, seu conselheiro e mentor. Ela sabia que flechas e lanças não resistiriam a uma investida dos senhores e o preto velho alertava que o cheiro dos brancos chegava com o vento.

Reconheceu as fraquezas de seu povo e traçou a estratégia: ela resistiria. O inimigo só poderia chegar por um caminho. A trilha fora cuidadosamente preparada para levar os invasores para o centro do quilombo, aos pés da árvore sagrada. As crianças e os mais velhos se esconderam na mata fechada, enquanto os guerreiros e guerreiras circundaram a aldeia. A rainha vestiu-se de branco e se pôs em frente à árvore, como se previsse a chegada de seu principal rival.

A ordem já estava dada: “Quero ela viva”. Subestimando a astúcia dos negros, ao comando do sinhozinho, os capatazes invadiram o quilombo. Cercaram a árvore, mas rainha se manteve altiva. Acreditavam que a rendição seria fácil, até que da mata ecoaram os gritos dos guerreiros, hábeis caçadores que quando se moviam faziam o barulho de milhares de homens. Lanças e flechas certeiras, lutas corporais, mas os tiros logo equilibraram e tornaram a batalha desigual.

Quem pode, fugiu. Enquanto se seguia a perseguição, mais uma vez aqueles olhares se cruzaram. Ela firme, com sua lança em riste e facão na outra mão. Ele apontando a pistola. Um duelo injusto, mesmo assim ela avançou com coragem, não desviou os olhos e esboçou um sorriso quando a flecha do seu guerreiro mais valente lhe atravessou o peito.

Diante da frustração, tomado pelo ódio, tirou o facão da mão dela e num só golpe arrancou-lhe a cabeça. Mandou esquartejar seu corpo e amarrou na própria capa o “troféu”.

No arraial, mandou vir senhores e escravos de todas as paragens. Na praça principal, no adro da igreja, ergueu orgulhoso o emblema de sua “vitória”. Mas aqueles olhos vidrados, no rosto guerreiro, e o sorriso glorioso foram o sinal alentador que seguiu a alimentar o espírito insurgente daqueles homens e mulheres que, apesar de sua vil condição, se viram representados na força daquela rainha.

Dizem que no meio daquela mata uma embaúba prateada ainda reflete um sorriso altivo. “Iku, a morte, não toca em doente”, dizia o preto velho. “Não precisa ter medo, somos iniciados no mistério, somos imortais.” O quilombo seguiu sua história de resistência, prenunciando a natureza deste povo que se mostra vitorioso cada vez que um tomba e outro se ergue.

O sorriso da rainha diante da imortalidade, o mesmo sorriso de Zumbi dos Palmares à beira do desfiladeiro, de Malcolm X e Martin Luther King ao serem alvejados. O grito de Luísa Mahin, de Carolina de Jesus, de Cláudia, arrastada pelos capitães do mato. O grito das senzalas, favelas, comunidades, periferias. O riso do jongo, das escolas de samba, dos terreiros.

Nessa revolução preta, crespa, feminina, o sorriso de Marielle Franco ressoa com a mesma força do grito de nossos ancestrais. O que vimos foi mais um capítulo da mesma história, na qual os senhores simplesmente aniquilam os insurgentes. Com as mesma crueldade, sem disfarces, sem dó. Na frieza do chicote que estala, a sentença e o aviso: não ousem se rebelar.

Só se esqueceram de uma coisa, luto pra nós é verbo conjugado em primeira pessoa do presente. Um tomba, outro se ergue e segue na luta. O grito de Marielle ainda ecoa em cada um de nós que lutamos com esperança por um país e um mundo mais justo.

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