Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

O enterro do pai de santo

Esta história introduz uma questão importante: a morte no Candomblé, sobretudo o direito aos ritos, nem sempre respeitado pelos familiares

Do respeito floresce a nossa continuidade

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Ela tinha apenas nove anos quando foi tomada pela força de Iansã. Franzina ainda, corpo de menina. Tornava-se mulher ao som dos atabaques, dançando lindamente, flutuando com as mãos ao vento, espantando as forças nefastas, limpando o terreiro com seus brados de axé. Seu pai, o babalorixá, tinha mais de 40 anos quando a mãe a entregou antes de sair pelo mundo.

Era a filha, a herdeira. Era seu maior orgulho. E cresceu feliz com todas as outras crianças do terreiro. Sob o cuidado das velhas, suas tias, a quem dedicava respeito e obediência. O pai a preparava, era rígido, às vezes até exagerava. Era um amor, um dengo, mas não era fácil, não. E ela não contestava, era uma boa filha, era seu maior orgulho.

Na lida do candomblé ela cresceu. Estudou, se formou, foi trabalhar. O terreiro estava bem estruturado e exercer uma profissão lhe dava um grau de liberdade que a rigidez do ritual nem sempre permitia. Como o pai estava envelhecendo, passou a casa para o nome da filha, que nessa altura andava de namoro com um rapaz da vizinhança.

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Um dia ela chega para o pai e conta que está grávida. O pai resistiu à ideia de casamento: “Cuido de você e do meu neto”.  Mas ela estava apaixonada. Foi uma linda festa, com a certidão do cartório e a bênção dos orixás. Nasceu o neto e vieram os problemas: o marido não queria ouvir falar de candomblé, afastando a esposa e o filho do terreiro.

Para desgosto do velho pai de santo, com quase 70 anos, a família se converteu. A filha tão querida, sua herdeira, regida por Iansã, tornara-se evangélica. Um desgosto. Mesmo com todo o apoio da comunidade, com o carinho dos filhos e filhas de santo e da velha tia, a única que sobrara forte apesar dos mais de 80 anos, o pai de santo não conseguiu suportar. Entregou-se à tristeza, à dor e sucumbiu com um tumor no estômago.


A morte era esperada, mas o terreiro estava em choque. Quando a primeira quartinha foi emborcada, um misto de angústia e dúvida pairou como névoa: “O que será de tudo isso? O que será de nós?” Preocupações necessárias. Com a herdeira e única filha afastada, a continuidade do terreiro estava em xeque.

A velha tia tomou a frente. Reteve o choro, escondeu a dor e delegou a função de cada um: “Vai chorando e vai fazendo”. O corpo chegou e antes mesmo que fosse tirado do carro funerário, a filha cruzou o portão feito um raio, dura, irascível. “Pode parar”, gritou secamente. “Aqui não vai ter velório nenhum”. Os filhos de santo se revoltaram, os orixás se manifestaram, a vizinhança parou. A velha tia se manteve calma, não moveu os olhos, não franziu uma ruga.

A filha não vinha só, trazia o marido, o filho, o advogado, o pastor e os irmãos da igreja. Nem eram tantos, o pessoal do terreiro até podia resistir, mas ela tinha a escritura e a lei a seu favor. O velho pai morreu dizendo: “Você pode conhecer sua filha, mas você não sabe com quem ela vai casar”.

Discutiram, negociaram e chegaram a um acordo: a filha não tocaria no corpo e o povo do terreiro entregaria a chave e consentiria o velório no cemitério. Não era o que recomendava a tradição, em se tratando de um babalorixá daquela estatura, mas os atos religiosos estavam feitos e seria uma vergonha ver a filha colocar aquele terno preto no pai que viveu e morreu aos pés do orixá. A velha tia ponderou: “É melhor assim”. Seguiram para o cemitério municipal.

A filha prostrou-se ao lado do féretro e recebia com frieza e certo desdém os cumprimentos do povo do axé. Até os pais e mães de santo que a viram crescer, gente que veio da Bahia, do Rio de Janeiro, para se despedir daquele homem tão querido. Os vizinhos que conheciam bem aquela história e lamentavam a morte de um grande líder que sempre ajudou a todos.

A morte era triste, mas não era nada comparada àquela situação. Um velho amigo tentou fazer uma homenagem. “Aqui não vai ter cantoria”, repreendeu a filha. Meia hora antes do enterro, o padre passou para oferecer seus préstimos, ela o escorraçou. Mesmo depois de horas ao lado do caixão, continuava incólume, sem derramar uma lágrima.

Inconformados, os filhos de santo não acreditavam que depois de tanto esforço e luta para manter uma comunidade, tudo acabaria daquela forma. A velha tia seguia estática, num transe triste, introspectivo.

Chegou a hora do enterro. A filha chamou os irmãos da igreja, mas antes que pudessem pegar nas alças do caixão, as mãos fortes de seis ogans do terreiro o fizeram. A filha pensou em gritar, mas quando a voz da velha tia entoou o cântico, os ogans entenderam seu olhar e ergueram o caixão aos ombros. Um vento se desprendeu do vácuo, a filha rodopiou num giro abrupto e sentiu a força de Iansã. Em um segundo, uma multidão toda de branco tomou cada espaço.

Vieram todos os orixás, mas Iansã seguiu na frente. Sacudindo os braços, tremendo os ombros e abrindo caminho para o cortejo com sua rama de folhas de peregun. As tias da Bahia comentaram entre si:

– Oxê, mas ela não se converteu?

– Ela se converteu, mas Iansã não.

E aquele povo de branco, aquele tapete de paz e consolo, tomou conta das alamedas. Iansã se pôs na beira da sepultura, e quando o caixão bateu na terra, soltou seu brado estridente: “Hei…”, e também suas lágrimas, as lágrimas que sua filha tanto segurou.


O corpo retornou à terra, a multidão deu as costas e a vida seguiu. A filha despertou do transe, mas não conteve a tristeza. A velha tia juntou-se a ela. Choraram juntas.

– Bênção, minha mãe.

– Ô, minha filha, que pai Oxóssi te abençoe.

– Aqui tá a chave e a escritura. Vou em casa me trocar e já lhe vejo no terreiro.

– Vai, minha filha, vai que tem muito trabalho pela frente.

O marido tentou intervir, mas depois daquele olhar só teve coragem para dizer: “Vai, bem, deixa que eu tomo conta do pequeno”.   

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