Diálogos da Fé

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O desconforto do corpo de Jesus, rainha do céu

Os intolerantes esquecem: Cristo revive em diferentes feições, mas sempre ao lado da liberdade, justiça e igualdade

O desconforto do corpo de Jesus, rainha do céu
O desconforto do corpo de Jesus, rainha do céu
Cena da peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu"
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Em uma igreja lotada, ouvimos Ela se levantar e reclamar do desconforto dos assentos. Mas o verdadeiro desconforto não dizia respeito aos bancos de madeira, mas às nossas crenças, nossa moral e preconceitos arraigados que seriam todos remexidos na noite de 23 de outubro na Paróquia Santíssima Trindade, em São Paulo.

Com “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, mais do que assistir a um espetáculo teatral, celebramos outra vez o mistério da encarnação de Cristo, o Deus vivo em todos nós. Celebramos a empatia, a alteridade, comungamos com diferentes credos a nossa vida e nossa luta.

A atriz Renata Carvalho é quem empresta seu corpo para contar e viver, de maneira forte e sensível, a trajetória de Jesus, seus ensinamentos e seu martírio, atualizados para a realidade vivida por mulheres cuja corporeidade não corresponde à sua substância e que por essa condição são rejeitadas, excluídas e perseguidas. Não é preciso ser um exegeta para reconhecer nelas a presença de Jesus. que também era verbo e carne incompreendidos.

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O alvoroço em torno da peça demonstra que a própria mensagem de Cristo ainda está por ser compreendida. Por isso encenações como esta, capazes de provocar desconfortos, são ainda mais relevantes e necessárias em tempos nos quais a insanidade religiosa sente-se confortável no contrassenso de perseguir, julgar e atirar pedras.

Mas o que mais chamou a atenção foi ver ilustrados do alto de sua sapiência acomodarem-se confortavelmente em cima do muro para comparar a representação de Jesus transsexual com o episódio de Charlie Hebdo, dando ainda mais força ao ímpeto fundamentalista.

Não vou aqui discorrer a respeito de uma tradição à qual não pertenço, mas como católica posso dizer que não existe nada de ofensivo ao cristianismo, e que a comparação com o episódio de Charlie Hebdo é absolutamente incabível e demagógica.

Enquanto na  cultura religiosa muçulmana vigente, ao que sabemos, a representação do profeta Muhammad (Maomé) é proibida, no catolicismo ela nunca foi um problema. Ao contrário. Está presente nos cultos, memória e  simbolismo da vida e martírio de Cristo desde a religiosidade popular até os cânones oficiais.

A sua “real” fisionomia é, inclusive, tema de especulação no universo acadêmico. Pesquisadores questionam a incoerência da imagem eternizada de um Cristo de pele, cabelos e olhos claros, quando as características da população de seu local de origem, a Palestina, são completamente distintas.

Logo que nos deparamos com tais incoerências, nos ensinam que a imagem de Cristo assume as feições da época em que é representado, para que assim possamos nos livrar de qualquer suspeita de racismo e xenofobia que envolve a manutenção desse imaginário que se formou em torno de sua figura.

A representação cênica de Jesus também não é novidade para nós. Obras teatrais e cinematográficas representaram de diferentes maneiras Jesus, desde seu nascimento até sua páscoa e ressurreição.

Aqui mesmo no Brasil, a encenação da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em Pernambuco, se tornou um grande espetáculo incorporado ao turismo da região. A peça conta com transmissão e patrocínio da emissora da Rede Globo, que também fornece seus atores para interpretar as personagens bíblicas.

Encenações menos pretensiosas que esta também não eram raras até alguns anos atrás em comunidades que ainda respiravam os ventos conciliares. Na encenação do Evangelho durante as celebrações, víamos Jesus assumir feições distintas (jovem, negro, mulher), com uma coisa em comum: era sempre o marginalizado, o excluído, o perseguido.

Se os cristãos são capazes de suportar Jesus, que embora fosse palestino é representado como europeu, se permitem que sua imagem seja aviltada por doutores da lei, falsos profetas e fariseus, por que se referir a Jesus no gênero feminino é considerado uma ofensa?

O problema não é a sua representação, mas a ideia construída a respeito de sua imagem, que sustenta a estrutura patriarcal, e por outro lado o que se constrói como ofensivo, antinatural e desrespeitoso.

Assim como os discípulos em Emaús foram incapazes de reconhecer Jesus ressuscitado que caminhava ao lado deles, hoje com as visões moldadas pela misoginia e transfobia não é possível enxergar que Cristo revive em diferentes corpos, mas sempre ao lado da liberdade, justiça e igualdade. É este o espírito que deveria mover todos que se consideram cristãos.

Jesus não silenciava diante da moral opressora. Ensinava com uma pedagogia paciente, por meio de suas parábolas, uma ética inclusiva que deve acompanhar os passos de quem se pretende seu seguidor.

Não é nos templos que Jesus se faz vivo. É em nossos corpos, na nossa luta diária pela justiça, na manifestação concreta de nosso amor ao próximo. Saio da peça me lembrando porque os bancos das igrejas são tão desconfortáveis. O cristianismo não é religião do conforto ou do comodismo. Ele nos desacomoda, nos deixa desconfortáveis com tudo que oprime, discrimina e explora nossa existência. Como sentir-se confortável diante disso? 

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