Diálogos da Fé

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Novo livro ajuda a pensar o candomblé antes, durante e após a pandemia

Ao defender o candomblé como território de resistência, o babalorixá Márcio de Jagun mostra como a religião reagiu e se reinventou

O candomblé permitiu aos negros reconstituir os laços familiares
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Não são poucos os desafios do Brasil e do mundo na atualidade: a pandemia, o avanço de expressões de ódio, como o racismo, a intolerância religiosa, o fascismo e a misoginia, tudo isso somado à polarização extrema e à disseminação de notícias falsas.

Como compreender o candomblé nesses tempos e como as tradições de matriz africana têm se posicionado diante dessa crise sem precedentes?

Conversamos com o escritor, professor e babalorixá Márcio de Jagun, que também considera o candomblé um território de resistência, e pedimos que nos ajudasse a refletir sobre essas e outras questões.

Para autor do importante Yorùbá: Vocabulário Temático do Candomblé, essa religião nasce das crises: “a crise da escravidão, a crise do preconceito racial, a crise da intolerância religiosa, entre tantas outras.” Os terreiros, em suas palavras, são “ embaixadas da diversidade”.

“Lá, o acolhimento e a solidariedade são partes do rito. O candomblé oferece valiosos exemplos de respeito aos idosos, às mulheres, às crianças, aos vulneráveis. Não importa a etnia, a orientação sexual, nem a condição social. Todos que frequentamos o ambiente de Terreiro, temos a oportunidade de aprender tudo isso vendo, sentindo, dançando, cantando, refletindo.”

Para ele, o Candomblé é uma religião absolutamente libertária. “A revolução para nós é divina (Èṣù); a inovação científica é um Òrìṣà (Ògún); o Deus que nos conduz pelo nosso destino é nossa cabeça (Orí) e o nosso Criador (Ọlọ́run) não exige de nós a perfeição, mas as virtudes. O Candomblé nos oferece muito. Sobretudo, a romper as amarras –  todas elas”, explica.

Ao defender o candomblé como um território de resistência, Jagun nos fornece elementos para entender como a religião reagiu e se reinventou diante das crises. O caos, diz, é um elemento transformador. “Compreender isso não é acomodar-se perante as crises, mas entendê-las como elementos catalisadores de mudanças”, esclarece. “Vemos a morte (Ikú), a doença (Àrùn), a apreensão (èèmọ̀), como exercícios, como possibilidades de aquisição de virtudes.”

Na visão de Márcio de Jagun, os ancestrais trazidos para o território brasileiro no regime da escravidão uniram-se a antigos inimigos históricos de outras etnias africanas e passaram a rezar e a dançar juntos. Passaram a celebrar, no mesmo espaço, deuses que eram invocados uns contra os outros nas guerras. Os ritos e os elementos de culto foram adaptados à realidade social, à fauna e à flora que encontraram. 

Seguindo seu raciocínio, o poder de transformação surge como ferramenta de resistência e de permanência. “O Candomblé usou de estratégias muito peculiares para contornar os vários negacionismos. Usou de seus conhecimentos milenares da herbologia para curar as dores, sanar os males; usou seus contos, rezas, cantos, provérbios, poemas como estratégias de transmissão de saberes e de sobrevivência, sem que as classes dominantes se dessem conta desse método”, revela. 

O babalorixá Marcio de Jagun

No livro O Candomblé em Tempos de Crise: Pensando a Religião Antes, Durante e Depois da Pandemia (Arché, 2020), o autor demonstra que essas metodologias foram e continuam sendo extremamente eficazes. Além disso, ao aprofundar a análise, relembra que a vacina se transformou em uma discussão política, inclusive com dogmas que contestavam o avanço científico, ao passo que na religião dos Orixás a ciência é cultuada como divina. “Ògún, o Deus da forja, da caça, da agricultura e da guerra, aquele intitulado de asíwájú (o desbravador), é compreendido como a própria tecnologia, a invenção; ele é a ciência. Logo, no Candomblé, a ciência é deificada. Para nós, não há conflito entre ciência e religião. A ciência está em nosso altar, é um Orixá.” 

Em seu livro “Ewé: a Chave do Portal” (Litteris, 2019), o autor aborda uma perspectiva de saúde e de doença de acordo com a filosofia yorùbá e ensina que numa tradição calcada na oralidade, os valores são transmitidos por meio de contos, de mitos. “Um deles, por exemplo, diz que a doença (Àrùn) e a morte (Ikú) são casadas e tiveram vários filhos, como a peste, a ansiedade, os problemas. E nenhum deles causava danos ao mundo, até que o homem, por sua ambição, dispersou os filhos de Àrùn por todo o planeta. Mesmo assim, o Criador disponibilizou, aos seres humanos, os deuses que poderiam ajudar a humanidade a suplantar esses males, como Ọ̀sànyìn e Ọmọlu.”

O babalorixá ainda explica que no Candomblé vencer a morte e a doença não significa deixar de morrer, nem de adoecer. “É possível vencer a morte mantendo viva a memória e os feitos dos ancestrais. Mesmo que a doença se abata sobre nosso corpo, é possível não ser derrotado por ela, enquanto produzimos e somos úteis de alguma forma.”

E prossegue: “O culto aos Orixás não visa uma vida sem percalços. Todos somos pessoas sujeitas aos desafios do mundo. O que se objetiva é equilíbrio. Em equilíbrio, somos capazes das melhores escolhas e decisões. Em equilíbrio, lidamos melhor até mesmo com a morte e com a doença. Os Orixás são expressões da natureza, são sentimentos, emoções. Nossos ritos nos colocam em contato com essas forças. Buscamos harmonizar a natureza que existe entorno de nós e dentro de nós. Assim, aprendemos a atravessar as crises, a suplantar as dores. Vale dizer que, também no campo da saúde, a medicina yorùbá (a qual chamo de herbologia) é riquíssima em recursos para a saúde do corpo e das emoções a partir do manuseio dos elementos vegetais. Essa medicina não considera a doença como centro dos males, mas o indivíduo. Por esse prisma, de forma propedêutica e terapêutica, trata as moléstias e suas causas.”

Menos de um ano depois do anúncio do primeiro caso oficial de Covid-19 no Brasil, mais de 210 mil famílias choram seus mortos. Como manter a esperança diante de um quadro tão devastador, que se torna ainda mais grave pela incompetência do governo federal? Para o babalorixá Márcio de Jagun, a esperança é a primeira que nasce e que faz nascer em nós a vida, a vontade de mudar. “Ela pulsa em nosso sangue, ela bate junto com o coração, no ritmo dos atabaques. Todas as vezes que soam os cânticos ancestrais, a esperança é renovada. Celebramos a esperança em nossa religião. Todas as vezes que uma pessoa é iniciada no Candomblé, uma nova esperança floresce. Assim aprendemos, assim acreditamos, assim ritualizamos a esperança”, finaliza.

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