Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
Neoliberalismo, religiosidades e Bem-Viver
O crescimento das igrejas evangélicas e do movimento carismático católico tem oferecido à classe trabalhadora respostas subjetivas e objetivas para seus problemas


O teólogo José Comblin afirmava que o neoliberalismo é uma espécie de fé, mas não uma fé qualquer, e sim uma fé contra as evidências, uma vez que está condenado ao fracasso, como pode ser observado no aumento das desigualdades sociais, especialmente nos países do Sul Global que adotaram essa perspectiva como a “salvação” de suas economias. No entanto, o neoliberalismo vai além de uma simples doutrina econômica; é uma ideologia que a classe dominante utiliza como instrumento de coesão social e controle. Como observa o psicanalista Christian Dunker, o neoliberalismo se estende para “uma psicologia, uma forma de moralidade, de resolver os conflitos humanos, de pensar a religião, a arte, a vida”. Esse pensamento, pautado no modelo de mercado, lucro e competitividade, permeia e afeta todas as relações sociais, tanto no cotidiano quanto na vida prática das pessoas.
As transformações no mundo do trabalho nas últimas décadas, aliadas a uma crescente descrença em projetos de transformação radical da sociedade por meio de organizações coletivas que confrontam o capital, impactaram toda a classe trabalhadora. Desprovidos de espaços de organização política e imersos em uma ideologia meritocrática que glorifica o trabalho informal e promove a ideia de “empresa de si mesmo”, os trabalhadores reformularam suas identidades de classe, mas, nesse processo, dissiparam a essência coletiva e trabalhadora que antes os unia.
A religião, como expressão da cultura, não está imune à influência do neoliberalismo em sua teologia. O crescimento das igrejas evangélicas e do movimento carismático católico tem oferecido à classe trabalhadora respostas subjetivas e objetivas para seus problemas sociais e psicológicos. Embora a religião possa proporcionar melhorias, como o senso de comunidade, a reorganização da vida cotidiana, lazer, apoio socioeconômico e psicológico, além de experiências de êxtase religioso, é importante também observar como os discursos neoliberais impactam essa classe. Aspectos como a meritocracia, o individualismo e a ideia de lucro ou prosperidade como sinais de uma vida abençoada por Deus são expressões claras dessa influência.
Esse tipo de discurso fundamenta-se na culpa como elemento central de uma espiritualidade moldada pela ideologia vigente. Nesse contexto, a falta de prosperidade é interpretada como consequência de uma vida pecaminosa, afetando diversas áreas, como a família, saúde, moradia, segurança e educação. Nesse sentido, essa religiosidade serve como instrumento de manutenção da ideologia neoliberal. Ela oferece uma identidade coletiva ao mesmo tempo em que promove a individualização na busca por uma vida digna, onde o sucesso pessoal é o objetivo final. Não se trata de garantir uma vida digna para todos, mas apenas para alguns, os “merecedores”, os escolhidos, os filhos de Deus.
Ao analisarmos os índices de ansiedade divulgados em junho de 2024 pelo Instituto Cactus em parceria com a AtlasIntel, constatamos que cerca de 68% da população brasileira relata sentimentos de tensão, nervosismo e ansiedade. Ainda mais alarmante é o fato de que 58% dessas pessoas não buscaram ajuda profissional. Esses dados revelam o colapso do modelo de mundo em que vivemos, refletindo também o fracasso das religiosidades que se apropriam de um excesso de positividade – um fenômeno que Byung Chul-Han explora em seu livro Sociedade do Cansaço – e de teologias da prosperidade e coaching que propagam lógicas do mercado.
Em uma sociedade onde o valor do indivíduo é medido por seu desempenho e pela pressão de ser o melhor em todas as áreas da vida, e onde os laços coletivos foram desfeitos pela lógica da competitividade, torna-se urgente buscar alternativas para uma vida verdadeiramente digna. A esquerda e as teologias da libertação precisam colocar a lógica do cuidado do ser no centro de suas propostas e ações, pois a classe trabalhadora tem buscado o refúgio de suas angústias em lugares que, talvez, oprimam ainda mais sua existência. Assim, é fundamental resgatar as sabedorias dos povos originários, como o conceito andino de “Sumak Kawsay” ou Bem-Viver, que promove a interação harmoniosa entre indivíduos, comunidades e o meio ambiente, com foco na criação de condições essenciais de equidade e justiça para todos.
Diante desse cenário de esgotamento provocado pelo neoliberalismo, somos desafiados a construir alternativas que resgatem o valor da vida coletiva, do cuidado mútuo e da justiça para todos. Por isso, convido a todos para o Curso de Verão do CESEEP, que está organizando a sua 38ª edição, a ser realizada entre os dias 7 e 16 de janeiro de 2025 na PUC-SP, com o tema “Semear o Bem-Viver: Caminhos para o cuidado da Saúde Mental”. O evento propõe refletir sobre o tema da saúde mental nas dimensões sociais, políticas, religiosas e populares, trazendo análises, desafios e possíveis saídas para enfrentar as malezas que o neoliberalismo provoca em nossa saúde mental. Não precisamos aceitar um mundo onde a competição e a meritocracia ditam o nosso valor. Podemos buscar, juntos, formas de vida baseadas na solidariedade, no Bem-Viver, onde o bem-estar de cada indivíduo está conectado ao bem-estar da comunidade e do meio ambiente.
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